Sexta-feira, 29 Março

«Magic Mike XXL» por José Raposo

Magic Mike XXL vem trazer a lume o desgaste da figura do realizador no cinema contemporâneo. Já não se trata aqui de impor uma visão autoral, e de procurar elaborar um projecto estético isolado das forças diabólicas do mercado, indo ao encontro dos polícias do gosto num beato autorismo karaoke, mas seguir pela estrada fora – pela grande estrada Americana – e filmar o mundo à velocidade do desejo, onde todos os objetos de superfície são penetrados pela anfetamina do capital.

Steven Soderbergh, a principal força criativa do filme (e uma das figuras mais emblemáticas do cinema contemporâneo – este período da sua obra, ele que disse não querer filmar mais para cinema, é do melhor que se tem feito no cinema americano – … e não esquecer também The Knick, a melhor série de televisão da última década), afirmou querer abandonar a realização devido ao estado em que a indústria chegou, secundarizando e menorizando o papel do realizador, transformado em marioneta alheia. Começa a confundir-se aqui o próprio Magic Mike, o protagonista do filme representado por Channing Tatum, e Soderbergh, ambos expulsos do seu território pela corrente da alta finança

Gregory Jacobs, habitual assistente de Soderbergh, tem aqui a sua estreia na realização, trabalhando sobre o guião escrito por Reid Carolin, num registo que amplifica o poder de atração do primeiro filme. XXL significa aqui mais droga, mais espectáculo, e mais dinheiro. A grande diferença, e uma novidade que altera profundamente a textura do filme, é a introdução do dispositivo do “road movie”. Para participarem numa convenção de strippers, Mike e companhia atravessam o Sul dos Estados Unidos como quem anda à procura do sonho americano. O humor intoxicado das sequências de viagem estabelece um ambiente de boa disposição que atravessa praticamente todo o filme, e não deixará de ser interessante a forma como Jacobs sustém esse registo sem grandes acidentes de percurso. Sem antagonismos maiores do que a vida ou reviravoltas inesperadas (que regra geral são dispositivos narrativos inúteis, tal não é a sua previsibilidade e inconsequência dramática), o que há de melhor neste XXL é a liquidez da narrativa – não há vilões ignóbeis, nem cavaleiros armados em heróis. Todos os personagens, que no seu conjunto compõem um retrato perfeitamente razoável das possibilidades do homem comum no mundo contemporâneo, vivem ao sabor do vento, aqui e agora. Essa disponibilidade, a tal liquidez, passa por deixar de erguer fronteiras entre a identidade pessoal e o mundo do trabalho, entre hedonismo e empreendedorismo. Não se tratará de dar tudo por perdido, ou de recusar a legitimidade dessa categoria nebulosa que é a vocação enquanto mecanismo de ação do homem no mundo, mas antes propor uma figuração de uma instabilidade genuinamente contemporânea. Onde acaba o trabalho e começa o lazer? Ainda há diferença entre a biografia e o currículo? Quando Mike abandona momentaneamente o seu negócio de mobílias e regressa ao stripping, é para ganhar dinheiro ou para se divertir?

O efeito surpresa de Magic Mike passou muito pela forma como encenou alguns destes temas a partir de um grupo de strippers masculinos. Não deixa também de ser sintomática a forma como alguma da crítica mais conservadora se deixou ofuscar pelos corpos masculinos hiper-estilizados. Steven Soderbergh é um cineasta que tem trabalhado de forma consistente a relação entre corpo e mente. Agora que a mente (e o seu atrofiado ego) se sincronizam de forma inexorável com os humores atonais do capitalismo, muito em função da ligação constante à internet (nem com Ablixa, a droga de Side Effects, 2013, isto lá vai), olhamos para o corpo enquanto espelho da alma. O corpo é hoje um território violentamente colonizado, profundamente afetado perante as palpitações exteriores. Essa colonização está à vista de todos, nos “six pack” em alta definição, no movimento do corpo em perfeita sincronia com o último “hit” da Pop, e a resistência à leitura do corpo enquanto texto só vem sublinhar algumas dessas ansiedades.

Na “set piece” final uma das performances desenvolve a sua coreografia partir de um espelho falso. A composição formal de Soderbergh serve-se desse enquadramento para criar uma profundidade de campo desorientadora que se estende até ao lado oposto do palco, e é numa dessas diagonais que atravessam o espaço que podemos ver o cinema a pensar o espectáculo da representação.

O melhor: A abordagem ao road movie; o liberalismo da narrativa.
O pior: Nada a apontar.


José Raposo 

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