Logo na sua introdução, quando confrontado com a questão de que ligação teria o encerramento de um estaleiro e a exterminação de uma praga de vespas asiáticas em Viana, a resposta negativa de Miguel Gomes foi dada da seguinte forma: “eu sou estúpido e a abstração dá-me vertigens“. Depois disto, e repentinamente, o realizador foge da cena como o diabo foge da cruz.

Os vinte minutos que sucedem levam-nos ao encontro de um retrato “docuficcional”, esse subgénero que a cinematografia portuguesa adotou com coração. Nesse preciso momento pensamos estar em mais um enésimo registo etnográfico, um revisitar aos códigos canónicos do género, ou até mesmo (visto Miguel Gomes protagonizar uma sequência intimista de um filme dentro de um filme) numa reciclagem à estrutura do seu Aquele Querido Mês de Agosto.

Mas passados vinte minutos tudo pára. A promessa é dada em forma de “imaginem só isto” e voilá, eis que começa realmente O Inquieto, a primeira parte de uma epopeia portuguesa que tem como base a estrutura narrativa do clássico As Mil e uma Noites.

Nesta versão, as histórias mirabolantes de um país arruinado pelo comando de “belzebus“, como a certa altura são descritos os governantes de Portugal, serve de substituição aos contos narrados por Xerazade: para entreter o cruel rei Shariar, a fim de alimentar a sua curiosidade e assim adiar a derradeira noite de núpcias. É um mundo fantástico criado através de uma imaginação corrosiva e trocista na caricatura e, com isso, sublinhar a “portugalidade” da sua gente. Nisto, Miguel Gomes consegue atingir a critica social.

Dividido em três atos, todos eles sustentados por tons distintos, O Inquieto começa por elaborar uma sátira à política, não só portuguesa, como também europeia. Em The Men with Hard-Ons o absurdo ganha vida e funde-se com a referência persa, na qual as maldições dos feiticeiros e os fundos europeus caminham lado a lado. Depois segue algo mais rústico, mas igualmente surreal: The Story of the Cockerel and the Fire, passada na aldeia de Resende, onde um galo que canta a desoras gera um movimento social e uma onda de protestos pela liberdade de expressão. No decorrer deste episódio espalhafatoso está um trio amoroso cujas consequências são catastróficas.

Encantados até com aqui com todo estes paradoxos e caricaturas em divida com o surrealismo, surge-nos The Swim of the Magnificents, o último ato e provavelmente o mais emocional e revoltado dos três. O ator Adriano Luz desempenha um professor de natação que planeia os banhos do dia 1 de janeiro, um ritual local, mas que para este possui um significado mais profundo. Neste episódio, o intimismo de Miguel Gomes revela-se mais humano e corajoso em abordar algo que poderia ser motivo de atenção para telejornais ou programas televisivos matinais. É aqui que As Mil e uma Noites funde por completo a ficção com o seu lado mais verité, onde os testemunhos dos desempregados, mais corretamente denominados de “desesperados”, auferem um registo coletivo, tudo enquanto Gomes faz maravilhas com a câmara.

As sequências tornam-se melancolicamente memoráveis, proclamando a extinção de um mundo fantástico e pagão e abrindo portas ao realismo do quotidiano e social, o nosso Portugal.

Terminado o primeiro filme da mais promissora trilogia portuguesa do momento, O Inquieto é uma confirmação do que já havia sido afirmado: Miguel Gomes é a cabeça de uma nova vaga Portuguesa. Comparado com a nouvelle vague Francesa ou não, a verdade é que há muito não víamos cinema português tão revitalizante, complexo e, sobretudo, tão criativo.
Uma obra-prima!

Pontuação Geral
Hugo Gomes
as-mil-e-uma-noites-volume-1-o-inquieto-por-hugo-gomesMiguel Gomes é tratado como um "rockstar" fora das fronteiras nacionais. Esperaremos que isso por cá aconteça também