Sexta-feira, 29 Março

«Son of Saul» (O Filho de Saul) por Paulo Portugal

Quem visita hoje o campos de extermínio de Auschwitz e Birkenau terá, ainda que por breves momentos, o impulso masoquista de reviver toda a brutalidade que ali se passou. No entanto, o que o filme do húngaro estreante de 39 anos Lázló Nemes propõe ultrapassa mesmo as mais ousadas introspeções.

Cercados por um estilo de constante enxaqueca, motivado por uma câmara stressada, exausta, e temperado pela banda sonora arrastada e espessa, seguimos sem hipótese de fuga um judeu selecionado para o trabalho de Sonderkommando, os tais funcionários temporários destinados a executar as tarefas operacionais daquele matadouro. Passados alguns meses, também eles seriam devorados pela matança nazi.

Tudo começa com a chegada um novo carregamento de judeus que recebem promessas de trabalho. “Precisamos de carpinteiros, de marceneiros…“, ouve-se, à medida que todos se despem e se preparam para entrar nas câmaras de gás. A câmara segue um dos funcionários com um grande X marcado nas costas, como que a distinguir o seu estatuto temporário, numa permanente agitação.

A intenção é clara, estamos na cabeça deste indivíduo que executa as suas tarefas sem olhar, sem querer ver, evitando assim testemunhar o que tinha de ser feito. Assim, arrasta corpos, esfrega o chão, separa valores dos despojos; de seguida passa a outro departamento, onde enche os fornos ou, numa fase posterior, atira à pazada as cinzas para o rio. Para começar tudo de novo. Não há tempo a perder.

A tarefa era hercúlea naquele ano de 1944, depois de ser anunciado que alguns milhares de elementos teriam de ser tratados em escassos dias neste verdadeiro campo de trabalhos forçados.

Nemes detém-se neste homem a viver um estado “zombificado”: “nós há muito que estamos mortos“, diz a certa altura. Contudo, este descobre uma réstia de humanidade ao aperceber-se que um menino ainda tem batimento mesmo depois da aplicação do gás Zyklon. Depois de ser asfixiado por um nazi de bata, decide que se tratava do seu filho e, a partir daí, elege como objetivo o seu enterro e uma oração judaica por um rabi.

Ganhe ou não a Palma de Ouro, Son of Saul deixou já uma marca profunda neste festival. Mesmo que não seja um filme consensual. Por exemplo, o crítico do Libération Didier Péron praticamente arrasou o filme, questionando o estilo e as intenções do realizador.

Curiosamente, ao ler a crítica de Péron acabamos por valorizar o seu ponto de vista. Ainda que de forma contrária. Na verdade, a realidade que nos mostra Nemes foge à própria realidade. Está dois níveis acima, talvez nessa tal dimensão de videojogo hack’n’slash, em ambiente gótico habitado pelas tais personagens élficas de uniforme. Assim seguimos a nossa personagem com um objetivo bem demarcado. Nesse sentido, mais videojogo que realidade.

Contudo, caro Péron, na medida em que o habitual efeito widescreen é substituído por um muito mais limitado e eficaz 4:3, o habitual efeito visual fica diminuído à sugestão do que sabemos que lá está, mas que verdadeiramente não vemos. Exatamente da mesma forma como o erotismo, aquilo que apenas se entrevê desperta mais emoção do que a pornografia ‘in your face’. A solução adoptada motiva um realismo inesperado, muito superior a qualquer videogame.

A verdade é que apesar do lado “zombie” de Son of Saul não passar de uma ficção, e se servir apenas do destino cruel dos Sonderkommando, não deixa de nos empurrar para dentro do matadouro de Auschwitz. De uma forma como talvez mais as imagens do Shoah de Lanzmann, apenas nos autorizam o exercício da imaginação. Seguramente, este Son of Saul fará correr muita tinta.


Paulo Portugal

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