Quinta-feira, 28 Março

«Se Eu Fosse Ladrão… Roubava» por Duarte Mata

Não é inacessível a quem desconhece o trabalho de Paulo Rocha a sua derradeira longa-metragem (e que só agora, ao fim de 4 anos, estreia) Se Eu Fosse Ladrão… Roubava. É um filme que se apalpa, que se reconhece, cheio de migalhas que não nos deixam sair da vereda em que somos encaminhados, quase “Godardiano”. Porque o que temos é Cinema. Autêntico, rico intelectualmente, inovador e bem feito. Vejam-se as cores mórbidas, a focagem, o chiaroscuro em toda a cena da morte do pai (interpretado por um colaborador habitual de Rocha, Luís Miguel Cintra), ou a vitalidade dos travellings espantosos, que continuam a comprovar Acácio de Almeida como o mais distinto diretor de fotografia português.

Arte e vida estão de mãos dadas, parece dizer Rocha: Entrecruzarem-se cenas dos seus filmes, com imagens dos seus bastidores, associarem-se partes da vida do cineasta a excertos dos seus trabalhos, numa ligação simbiótica e inevitável (toda a arte tem, afinal, parte do seu artista) ou o começo do filme ser uma série de fotografias da sua família (apostamos que está, por fim, encontrado onde Pedro Costa se inspirou para a abertura de Cavalo Dinheiro) vêm comprovar isso mesmo. Poucas vezes se viram obra e artista tão bem enquadrados e estruturados no mesmo trabalho.

Há a questão filial: A voz rouca do realizador no início é substituída pela do pai, mostrando que a herança não foi só o relógio com que Vitalino (o alter-ego do cineasta neste filme) compra a sua viagem para o Brasil. São também projetos e ambições, o querer fugir a laços para fortalecê-los, através da paixão por terras estrangeiras (Macau e o já referido Brasil, como é dito “Os homens fazem-se fora e só depois se querem dentro”). Rocha associa cada um dos seus filmes a uma parte da sua vida: a infância a A Pousada das Chagas, a adolescência a Mudar de Vida – fosse o filme um livro e cada um dos seus capítulos teria como título ideal o nome de cada um dos seus trabalhos. E não deixa de ser irónico que escolha para o final, uma das cenas do seu primeiro filme (glorioso Os Verdes Anos), aquela morte trágica da personagem de Isabel Ruth que nunca teve enterro que só é concedido, por fim, na última sequência de Se Eu Fosse Ladrão….

Mesmo tendo sido realizado já nos seus últimos meses de vida e em estado débil, não é preciso mais para perceber que Rocha foi um dos maiores cineastas portugueses.

Uma carta de amor aos seus colaboradores (particularmente Isabel Ruth, uma constante nesta obra), um abraço caloroso aos seus ídolos (o poeta Camilo Pessanha e o pintor Amadeo de Souza Cardoso), um delicado testamento… tudo isso. Mas também mais do que isso. O derradeiro filme é também um dos seus melhores trabalhos, porque contém os outros todos. É a questão clássica do “Quem sou eu?”, a procura da identidade em causa que é, por fim, respondida e encontrada. Paulo Rocha foi o seu cinema. E nada mais é preciso para se ter uma vida tão completa.

O melhor: A não-linearidade da narrativa, um filme que consegue albergar artista e obra.
O pior: O facto de estar muito ligado com o realizador pode torná-lo inacessível a alguns espectadores.


Duarte Mata

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