Sexta-feira, 29 Março

«Hungry Hearts» (Corações Inquietos) por Duarte Mata

Já o dissemos aqui uma vez que, mais do que a história, a avaliação de um filme fundamenta-se pelo conjunto de meios a que este recorre. Uma das mais recentes estreias em Portugal, a última longa-metragem do cineasta italiano Saverio Costanzo (A Solidão dos Números Primos), Hungry Hearts – Corações Inquietos, vem fazer coro a esse argumento.

Refere-se isto pela simplicidade dramática (e, sinceramente, um pouco desassisada) do seu enredo: um americano e uma italiana (interpretada por Alba Rohrwacher, também protagonista do mais recente O País das Maravilhas, uma atriz para se ter o olho em cima futuramente), ambos vegans fervorosos, entram em conflito com os seus ideais quando o seu filho ganha problemas de crescimento devido ao regime alimentar a que é sujeito. O pai alimenta-o clandestinamente com carne, contrariamente à mãe, que entra num estado neurótico e obsessivo com as medicinas e alimentações alternativas que força a criança a seguir, envenenando-a gradualmente e ostracizando a sua família do exterior comodista.

Em mãos convencionais, obter-se-ia uma telenovela desesperada, mas Costanzo prova-se um desses cineastas genuínos que acreditam no conceito de auteur. Tanto a destreza manual buliçosa com que é filmado (a cargo do próprio realizador) como os planos picados vertiginosos ou até mesmo os “olhos de peixe” claustrofóbicos, tudo contribui para ter como resultado uma obra de suspense com raízes nos dramas sobrenaturais de Polanski (particularmente o afamado A Semente do Diabo), mas também com o estudo severo e violento a recair no matrimónio, do mais puro Cassavetes ou de Cenas da Vida Conjugal de Bergman (Costanzo, note-se, tem afoiteza pelo seu trabalho, mas também uma confiança desmedida com os seus atores, o que veio demonstrar os prémios de representações que Corações Inquietos ganhou em Veneza).

O mais interessante, no entanto, é a análise intimidante sobre a paternidade. Nenhuma destas personagens está pronta para ser pai, e nem percebe na sua plenitude esse conceito, até o momento em que entram numa “corrida para ver quem chega primeiro” e sacrificam o seu casamento pelo que cada um entende ser o bem-estar do primogénito. O filme, aliás, está constantemente a auto-referenciar e a destruir as suas cenas anteriores, particularmente o final, que devasta tudo o que de simbólico e relevante havia na cena do casamento (“se pudesse, adotava-te“, diz a sogra para a nora) nos primeiros minutos de filme. Interessante, recompensador e a par do zeitgeist contemporâneo, não haja dúvidas de que aqui há mais coração do que barriga.

O melhor: Os desempenhos do duo principal e a mise-en-scène que os apadrinha.
O pior: Uma certa falta de grandeur que nunca chega e o que parece ser uma incerteza sobre quando terminar o filme. 


Duarte Mata

 

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