Yvone Kane marca o regresso da realizadora Margarida Cardoso a Moçambique, a terra que a viu nascer, 11 anos depois da sua primeira longa-metragem de ficção, A Costa dos Murmúrios (2004). Enquanto na sua obra anterior adaptava um romance homónimo de Lídia Jorge, aqui toma total liberdade criativa no argumento e o resultado é um intimismo com a intriga. Yvone Kane é um filme sobre perdas, aliás todas as personagens deste registo narrativo sofrem desse mesmo mal, funcionando como uma alusão às memórias coloniais e dos traumas das guerras que teimam em não ser dissipados.

A história segue uma jornalista, Rita (Beatriz Batarda), que encontra num novo trabalho de investigação, a da misteriosa morte da ex-guerrilheira e ativista Yvone Kane, num escape à tragédia embutida no seu quotidiano. Assim, Rita segue para Moçambique, país que tão bem conhece devido às suas raízes. Nele reencontra a sua mãe, Sara (Irene Ravache), uma mulher que luta para obter um ponto de redenção da sua vida passada, enquanto enfrenta um fim predestinado.

Yvone Kane é um trabalho cuidadoso que se mantém longe da mensagem explícita, investindo numa narrativa por vias de barreiras físicas, como se o contacto direto com esta fosse uma tarefa intransponível. A câmara de Cardoso ostenta essa fobia e filma uma intriga que recorre muitas vezes ao uso de reflexos, janelas e redes, como se as personagens se envolvessem em proteções com o redor devastado por espíritos aprisionados, como é referido na passagem do hotel assombrado nas proximidades do desfecho. O pretexto para este retrato de legados e descendências de “fardos penosos”, a misteriosa morte de Yvone Kane (Mina Andala), nunca é devidamente explorado, nem sequer é conclusiva para a verdadeira essência da fita, que subliminarmente parece garantir-nos que não estamos perante de um thriller político.

Mas como havia sido referido, o filme de Margarida Cardoso nunca oferece nada como gratuito (os planos discretos são tais indícios dessa virtude narrativa). Ao invés, tudo nos remete a um retrato da ausência, o convívio entre mortais e fantasmas e o alcance da imortalidade arrependida através de um prometido mundo pós-morte. Mesmo sob a invocação desses vazios, Yvone Kane é acima de tudo uma coletânea de memórias. Curiosamente, tudo começa num cemitério e termina num enterro, sem a utilização de misticismos. Tal como é citado a certa altura,  “a vida é estranha, não é“?

Pontuação Geral
Hugo Gomes
Duarte Mata
yvone-kane-por-hugo-gomesO regresso de Margarida Cardoso a Moçambique e à ficção