Quinta-feira, 28 Março

«P’tit Quinquin» (O Pequeno Quinquin) por Jorge Pereira

“C’est la bête humaine, c’est Zola”

Em La Haine (Ódio), Vinz teimava em dizer ao incrédulo Saïd que andava uma vaca no meio dos subúrbios de Paris. Em P’tit Quinquin, não é preciso convencer ninguém que as vacas andam pela localidade, até porque a pecuária é o ganha-pão de muitos dos habitantes e principalmente porque, logo no início desta obra, vemos uma delas a ser retirada por um helicóptero de um bunker da segunda guerra mundial. Mas acham que a história acaba aqui? Nem por isso. Dentro da vaca vai descobrir-se mais tarde o corpo de uma mulher, sem cabeça.

À partida, quem visionar P’tit Quinquin sem notar no nome do cineasta provavelmente nunca diria que seria um filme/série de TV executado por Bruno Dumont, o qual é conhecido por filmes nada ligeiros, como L’Humanité, Flandres, Fora, Satanás ou Camille Claudel.

Aqui, Dumont entra nitidamente pelo campo da comédia burlesca e excêntrica, mas não esperem que a marca existencialista e alguns temas muito fortes (como a interioridade, a religião, o racismo, o bullying, etc) não entrem na equação, em especial na parte final desta série de 4 episódios/ filme de 197 minutos. O facto do elenco ser totalmente composto por «não atores» é outra das assinaturas que o realizador deixa por aqui.

Com situações de nos fazer rir até chorar e doer a barriga, em P’tit Quinquin seguimos em particular a forma como o inspetor Van Der Weyden (Bernard Pruvost) e o seu parceiro Rudy Carpentier (Philippe Jore) vão tentar deslindar o caso da mulher cujas ossadas são encontradas dentro de uma vaca, ficando o espectador mais tarde a saber que esta foi só a primeira descoberta macabra e que brevemente começam a amontoar-se os corpos. «Não é tempo para filosofar, Carpentier!» avisa Van Der Weyden ao seu parceiro, e com razão.

É quase impossível não nos lembrarmos de Peter Sellers e do seu Clouseau quando olhamos para esta dupla de agentes. Pruvost, jardineiro na vida real, é uma personagem repleta de tiques, maneirismos e provavelmente possui uma das sobrancelhas mais memoráveis do cinema e TV (fisionomicamente faz lembrar Michel Simon). A forma como ele cria o seu inspetor tem contornos épicos e a sua interação/diálogos com o parceiro e os habitantes da pequena (grande) localidade são uma das mais-valias por aqui, até porque este se assume sempre como rabugento e é capaz de dar dois tiros para o ar para ver se alguém está em casa (esqueçam as campainhas).

O mesmo se aplica ao pequeno Quinquin (Alane Delhaye) e a quase todas as cativantes personagens desta produção que nos transporta outra vez ao «Norte» que tornou famoso Dany Boon, embora notoriamente existam significantes diferenças na abordagem a estas gentes. Munido de um aparelho auditivo, uma expressividade ímpar e uma relação também única com a sua “complexa” família, Quinquin vagueia com os seus amigos pela localidade entre brincadeiras, partidas, «Guerra dos Botões» com rivais e acompanhando também ele o caso policial.

É certo que Dumont não inventa aqui a pólvora e também é correto dizer que todo este projeto tem certamente mais força na TV que no cinema, mas não haja dúvidas que esta é uma das maiores surpresas que um cineasta de autor providenciou nos últimos anos, permitindo-nos visitar um mundo extremamente caricatural, mas que simultaneamente balanceia o realismo e o burlesco de forma muito conseguida.

Absolutamente imperdível.

O Melhor: Apesar de extremamente divertido e burlesco, o projeto mantém sempre uma força para abordar assuntos sérios, tão característicos do cinema de autor
O Pior: Funciona certamente melhor na TV que no cinema


Jorge Pereira
(Crítica originalmente escrita em novembro de 2014)

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