Sexta-feira, 19 Abril

«Black Coal, Thin Ice» (Carvão Negro, Gelo Fino) por Hugo Gomes

A aparente história de um detetive aposentado e alcoólico que regressa cinco anos depois de um incidente (o ator Liao Fan teve que engordar 20 kg para este papel) para investigar um caso de serial killer, chegando a apaixonar-se por uma das principais suspeitas, é um embuste. Por outras palavras, algo que finge e cuja verdadeira natureza diverge dessa “falsidade inerente”.

Segundo o realizador Diao Yinan, viver na China atual é conviver diariamente com a absurdidade em simultâneo com os constrangimentos ditados e relembrados constantemente. Talvez seja por isso que o cinema comporta-se como o caminho mais viável desse despertar expressivo, o confronto da “película” com o surreal social que emerge.

Em Black Coal, Thin Ice (Carvão Negro, Gelo Fino), o inesperado vencedor do Urso de Ouro do último Festival de Berlim, a essência dessa China encontra-se estampada nas personagens melancólicas, errantes e atípicas, em conformidade com situações constrangedoras que posicionam o espectador em embaraçosos momentos. Será isto tudo um ensaio de humor negro ou apenas comédia involuntária? Um registo de teor crítico que esparge nesta atmosférica China do norte, industrializada e revestida numa capa de frieza que receia transparecer.

Eis um pseudo-thriller com mais preocupações com a elaboração de mensagens subliminares do que propriamente criar um fio condutor narrativo sustentável. A investigação, aparentemente digna de qualquer policial cinematográfico, o amor de poucas palavras e de pouco gestos que tanto relembra Wong Kar-Wai (a fotografia soa por momentos dilacerada de Disponível para Amar), tornam este filme numa expressão contagiada por diversos estilos cinematográficos, paciente nos seus devaneios (Diao Yinan expressa sem pudor) mas frenético em invocá-los.

Diria antes que existe muito por onde pegar nesta obra mas, infelizmente, os seus propósitos nem sempre são os mais esclarecidos ou percetíveis e a certa altura instala-se um autêntico confronto em estabelecer o que é mainstream ou não. Sim, existe algo de fascinante aqui neste retrato socialmente satírico, mas Black Coal, Thin Ice fraqueja em procurar pretensiosismo na sua descontração.

O melhor – a atmosfera e a exposição do realizador por vias do satírico
O pior – por vezes não sabe se deve continuar o enredo normalmente ou constituir-se em uma obramais transcendente e artística


Hugo Gomes

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