Sexta-feira, 29 Março

«The Two Faces of January» (As Duas Faces de Janeiro) por José Raposo

Para a sua obra de estreia na realização, Hossein Amini foi resgatar um trabalho menos conhecido da escritora Patricia Highsmith, autora cujo imaginário literário tem sido volta e meia motivo de adaptação para cinema. Amini, reconhecido pelos argumentos de As Asas do Amor (valeu-lhe uma nomeação para os Óscares na categoria de Melhor Argumento Adaptado), e do mais recente Drive – Risco Duplo, orienta-se assim pelo mapa esboçado por aquela constelação de cineastas que tiveram nos personagens de Highsmith fonte de inspiração e na qual se incluem nomes tão emblemáticos como Alfred Hitchcock (O Desconhecido do Norte-Expresso), Anthony Minghella (O Talentoso Mr. Ripley) ou Wim Wenders (O Amigo Americano).

O filme de Amini, filme de época passado na Grécia dos anos 1960, procura inserir-se nesta genealogia e um dos seus maiores méritos será o balanço que o realizador soube manter na aproximação a uma iconografia noir, na mesma medida em que se distanciou de forma satisfatória dos clichés dos exercícios de citação. O sentido evocativo do realizador, que queria passar o romance de Highsmith para cinema há já mais de 15 anos, traduz-se assim pela sinalização de um conjunto de gestos (é mesmo para isso que os cigarros de Mortensen estão ali daquela maneira e é também assim que se justifica a invocação de Bernard Herrmann a partir de uma composição de Arvo Part) capazes de partilhar do mesmo sentido de património cinematográfico.

As Duas Faces de Janeiro, que tem na fotogenia dos seus atores a principal porta de entrada para um triângulo de personagens difusas e evasivas, é um filme que vive muito à custa da tensão criada por aparências que nunca são muito bem aquilo que prometem ser à primeira vista. Chester (Viggo Mortensen) e Colette (Kirsten Dunst) são um casal de norte-americanos que se encontra em férias pelas bandas do Mediterrâneo, levando uma vida de turistas bastante desafogada e com grande convicção: agora estão na Grécia, amanhã será Itália. Há uma opulência evocativa de Fitzgerald no excesso de Chester que Amini soube trazer para o grande ecrã com uma sensibilidade dramática de assinalar, especialmente quando contrapõe a eloquência de Chester ao calculismo sonso de Rydal (Oscar Issac), um guia turístico que trava conhecimento com o casal durante uma visita à Acrópole, em Atenas.

O episódio da enigmática troca de olhares numa pitoresca esplanada entre Chester e Rydal, é exemplar pela forma como dá logo a entender a natureza daquele relacionamento: ao passo que Chester fica desconfiado, no receio de ter sido reconhecido em local tão improvável, Rydal sente-se atraído pelo magnetismo carismático do seu compatriota, no qual reconhece semelhanças com o seu pai. A complexa relação de Rydal com a figura paterna é aliás um dos aspetos mais decisivos na sua composição psicológica, tragicamente subterrânea e recalcada, obcecada sobre o sentido da sua própria identidade. Na carta que Rydal traz consigo compreendemos melhor a razão dessa inquietação, com Hossein Amini a trazer para o cerne da questão o existencialismo de Albert Camus que atravessa a obra de Highsmith. A ligação entre Chester e Rydal é então como que o principal horizonte afetivo do filme, em torno do qual a ação dramática vai avançando e que é posta em marcha a partir do momento em que Rydal decide ajudar o casal a escapar ao credor que os surpreende num quarto de Hotel.

Com uma cinematografia repleta de tons bege e ao serviço de uma mise en scène mais voltada para a construção de uma textura atmosférica, do que propriamente preocupada em perseguir picos de intensidade ao serviço de uma adrenalina adolescente, As Duas Faces de Janeiro tem ainda o mérito de abordar a paisagem natural de forma a ampliar o conflito psicológico dos personagens. Numa das sequências mais interessantes neste capítulo, vemos Colette a fugir em desespero de um autocarro quando dá conta da dimensão do sarilho em que está metida, correndo encosta acima pelo meio de um terreno árido e austero. É também o momento mais intenso de uma Kirsten Dunst demasiado ornamental, pouco mais que objeto de desejo e adoração platónica para Rydal.

Ainda que não seja um filme exatamente exuberante, As Duas Faces de Janeiro acaba por ficar a dever muita da sua graça à vivacidade que Amini soube retirar dos locais de filmagem, cristalizando assim a alienação de um grupo de forasteiros num território que lhes é estranho, nunca cedendo à tentação do “exótico”. Os personagens vão se transformando em fantasmas de si mesmos à medida que se vão perdendo, cada vez mais entranhados no Mediterrâneo: são estrangeiros autênticos, aqueles que fogem e se consomem no meio da azáfama mercantil dos bazares de Istambul.

O melhor: a progressão da performance vulcânica de Viggo Mortensen.
O pior: a importância de Colette não condiz com o seu papel ornamental.


José Raposo

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