Sexta-feira, 19 Abril

«Gone Girl» por André Gonçalves

O casamento é difícil, sobretudo quando somos vítimas da análise impiedosa e altamente subjectiva dos media. Se pudéssemos reduzir o novo filme de David Fincher, adaptação do bestseller de Gillian Flynn, a uma frase, este seria um bom resumo.

Descrição redutora, mas convenientemente redutora neste caso – dado que assistimos aqui a uma teia de mistérios entrelaçados sublinhados por uma caça ao tesouro curiosa, dos quais não devemos revelar muito mais do que a sinopse inicial. O filme começa assim no desaparecimento de uma rapariga. Mais um, pensará o espectador, já demasiado habituado a estas tramas que, aos poucos, aparenta não ser um desaparecimento como tantos outros, mas sim um homícidio cometido pelo próprio marido Nick Dunne (Ben Affleck, a brincar com o efeito da sua própria imagem naquela que pode ser a sua interpretação mais convincente até ao momento).

A desaparecida é Amy Elliot Dunne (Rosamund Pike, completamente talhada para este papel e a merecer todos os dividendos que daqui advenham), uma ex-ícone infantil dado que a sua infância foi sempre embelezada pelos livros da sua mãe, onde “A Incrível Amy” era uma projecção mais maravilhosa da sua persona.

Aqui, todos são projecções, somos desde logo avisados. Ao olhar dos media, Nick Dunne torna-se no principal suspeito do caso, um sociopata capaz de sorrir perante uma tragédia destas, enquanto a vida de Amy vai sendo cada vez mais glorificada. Soa familiar? Pois, é só ligar a televisão. Com o crescimento das redes sociais, a passagem de besta a bestial e vice-versa é ainda mais rápida, com o feedback disponível na hora em que um talk show famoso termina. Fincher tinha feito o seu ponto claro com A Rede Social, mas aqui o comentário sente-se estranhamente mais incisivo. Ao nosso olhar, ao olhar convenientemente distante do realizador, o que vemos pode não ser verdade.

David Fincher é um cineasta altamente qualificado e que percebe a sétima arte como poucos da sua geração, mas que ainda não me arrasou com um K.O. no cinema. Esteve muito perto muitas vezes (Seven, Alien 3… até a sua recriação de Forrest Gump com O Estranho Caso de Benjamim Button, a revelar mais apego sentimental que os restantes). Demasiadas vezes para este “casamento” com este espectador começar a revelar rachas. Ainda assim, tem sido uma vivência algo frustrante, esta de roçar a paixão assolapada tantas vezes, adquirindo em vez disso um respeito formal profundo.

Gone Girl talvez seja o filme que chegue mais perto dessa paixão e de me tirar o tapete depois da descoberta da caixa com a cabeça de Gwyneth Paltrow. É ironicamente também o filme mais próximo ao dilema paradoxal que tenho com este realizador de que tanto gosto e ao mesmo tempo não gosto o suficiente, não querendo revelar muito mais sobre a narrativa. De uma inteligência reconhecível – com muito a dizer sobre a nossa condição face a esta cultura mediática fabricada, de um savoir faire inegável, de uma demência tão bem calculada e de peças quase todas tão bem encaixadas (ignorando ali um pequeno buraco que custou a engolir) que não deixa espaço para que a verdadeira demência se instale. Será um problema mais pessoal aqui, porventura. Que a relação conjugal continue…

O melhor: o “savoir faire” de Fincher, inegávelmente num pico a nível técnico e a dirigir o melhor possível o seu elenco.
O pior: querer tanto fazer perfeição com uma obra com raízes mais trash que o elitismo formal do realizador, que asfixia um pouco o resultado final, por muito incrível que este já seja. 


André Gonçalves

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