Já dizia Antonioni que, para se fazer um filme, o realizador precisa de ter um olho para o exterior e outro para o seu interior. O mais recente trabalho de Joaquim Pinto, E Agora? Lembra-me (Grande Prémio do Júri e da Crítica na edição de 2013 do Festival de Locarno), segue esse memorando à risca. O resultado é uma obra rara que funciona tanto como testamento de um cineasta e da maneira pela qual quer ser recordado (como diz o próprio: “Esqueci-me das minhas ideias para me não esquecer“, com as suas dúvidas, medos, compunções e gostos) como também um retrato existencial perturbador do que é viver com a morte a cada suspiro.

Conhecemos a vida rigorosamente medicada de Joaquim Pinto, infetado com VIH e VHC, no decurso de um ano e dos tratamentos incertos a que se submete, enquanto recorda incidentes fulcrais que lhe conduziram ao seu estado atual (o 25 de Abril, a entrada na ESTC com ajuda de João César Monteiro, o primeiro filme). Acompanhado pelo marido, Nuno Leonel, consulta hospitais em Madrid e Lisboa, compra três hectares de um terreno abandonado, diverte-se com os cães (um deles está também fortemente enfermo) e partilha os relatos do seu quotidiano, principalmente as pequenas imagens que o atormentam.

Entre citações de Ruy Belo ou Mário Cesariny a referências de Pasolini ou Godard é demonstrada a importância da arte na maneira como pensamos a morte. Joaquim Pinto mostra a sua por um magnífico simbolismo no uso de imagens, como a Natureza, para representar o seu estado interior: inerte (o filme inicia-se com uma lesma), degradado (os incêndios) e encarcerado (os créditos finais sobrepostos numa sequência de um camião transportando aves engaioladas), ou os rasgos de um avião num céu azul, todas com uma certa noção da permanência do término da existência, que irá culminar num reprimido despertar religioso, onde se inclui detalhes da produção O Evangelho Segundo S. João, um dos seus mais recentes filmes.

Há um grande ênfase na história pessoal – a amizade de longa duração com cineastas como o já referido César Monteiro, Rita Azevedo Gomes ou o crítico Serge Daney – mas ainda maior no Universo – um livro encontrado na Biblioteca de Madrid, que relata as origens da Humanidade, em imagens de calibre teológico; as visitas a grutas antiquadas; o relato da descoberta de uma criança com vários séculos de existência; os saberes antigos que as gerações foram virando costas. É o “micro” a metamorfosear-se em “macro” (um vírus, uma abelha, um homem e por aí adiante), mostrando a intimidade, a ligação que cada ser possui com os restantes e de como uma existência pode ser pantagruélica, rica em ínfimos detalhes. E tudo isto num “documentário”.

Poderemos dizer que é “a outra face do espelho” do enigmático A Última Vez que Vi Macau de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, outra obra singular e testamento de um realizador, estreada o ano passado (e, curiosamente, também premiado em Locarno), mas com rostos, sem elementos fictícios e mais “temático”.

Juntamente com o som, a montagem é o triunfo do filme. Rica e variegada, recorrendo a técnicas diversificadas como o slow, fast e até mesmo stop motion, utilizando a sobreposição de cenas e o jump cut que servem, por um lado, para não tornar o tempo de duração (163 minutos) como motivo de abandono da sala, por outro, para conferir um figurismo à maioria das sequências. Não é de menosprezar também a seleção de trechos musicais melancólicos, de compositores como Dvorak, Schubert ou Beethoven, perfeitamente adequados ao conteúdo que lhes é atribuído.

Diz-se que no segundo exato em que morremos, a nossa vida passa diante dos olhos. Em E Agora? Lembra-me, Joaquim Pinto concebe o seu em mais de duas horas e meia. E não o quereríamos de outra forma.

Pontuação Geral
Duarte Mata
André Gonçalves
Hugo Gomes
e-agora-lembra-me-por-duarte-mataA experiência rica cinematográfica, tanto em termos de conteúdo como no uso das componentes técnicas.