Sexta-feira, 19 Abril

«Rio 2096: Uma História de Amor e Fúria» por João Miranda

A figura de quem luta por um mundo melhor já foi muitas vezes explorada, tanto na literatura, como no cinema. Rio 2096 é um filme que tenta oferecer mais uma dessas figuras, um modelo de resistência contra a injustiça e a desigualdade. No seu centro encontramos um guerreiro índio que, sem querer, se torna imortal e se vê dentro de uma guerra entre o Bem e o Mal. Através da sua história, atravessamos vários episódios da sociedade brasileira, desde a sua origem (como colónia), até a um futuro possível que dá origem ao título.

A estrutura do filme é episódica, a imortalidade da personagem central é apenas um dispositivo narrativo, já que se passam dezenas de anos (num dos casos pelo menos duzentos anos) em que esta assume a forma de um pássaro e a história “salta” até ao próximo episódio, sem qualquer motivo que não seja a aparente reencarnação de Janaína, o seu interesse amoroso.Em cada um dos episódios, o casal encontra-se no meio de uma luta contra um mal percebido e é apenas a sua atitude em relação a essa luta (e o cenário, claro) que muda.

Na realidade há algo que falha nas definições básicas do filme, o que acaba por perverter qualquer boa vontade que pudesse existir na sua realização. Há aqui uma comparação óbvia a fazer com os Wachowski e o seu tema recorrente do homem (sempre masculino) que recorre à violência contra uma autoridade que é pintada como maldosa (de forma bastante infantil) e que acaba sempre por se sacrificar e (normalmente) perder. Há uma apropriação e estilização de uma atitude anti-autoritária (os mais cínicos podem mesmo dizer uma mercantilização) que esgota o discurso revolucionário e participativo no gesto fútil da violência imediata, sem se desenvolver nunca qualquer plano real para um futuro: a única coisa que estes filmes fazem é vender a atitude anti-autoritária, mas mostrando-a sempre como estéril e imediata, esvaziando-a de qualquer potencial transformador. Neste caso, Rio 2096 chega a ser pior, equiparando um assalto a um banco por parte de pessoas que vivem numa favela a um ato revolucionário, normalizando a violência como forma de interação com a sociedade. Sim, há uma citação de Maquiavel sobre a necessidade de recorrer à Força quando as leis nos falham, mas quanta força? E com que objetivo? Lutar e destruir traduz-se melhor em imagens do que debater, cooperar e construir, fazendo com que este tipo de aproximações facilitistas e incompletas ao tema acabem por se ficar por tiros e explosões. Mais, focando-se apenas na ação violenta, acaba-se por se perder o trabalho incrível e tão pouco celebrado das lutas paralelas a esta, pelos direitos humanos ou pelas reformas sócio-económicas tão necessárias. Não quero argumentar que a Humanidade esteja nas melhores condições, mas, na ação revolucionária, prefiro Ghandi a Mao.

O dispositivo central da reencarnação e do destino acaba também por falhar para com qualquer objetivo revolucionário, já que acaba por retirar a força da escolha e da consciência, remetendo-a para algo que as personagens não controlam. O maniqueísmo escolhido da luta entre o Bem e o Mal, bem como todas as personagens que os representam, acabam por afastar da realidade tudo o que é mostrado, ficando-se por leituras liberais amorfas de episódios da História, um dos lados tão mau, tão mau, que se reduz a uma caricatura. O problema é que, como o argumentou Hannah Arendt, o Mal tem, na maioria das suas expressões, um ar banal e burocrático, sem grandes torcer de mãos ou bigodes e sem risos maléficos.

Dito tudo isto, este não é um filme sem o seu mérito: há uma preocupação em querer mostrar posições de resistência à opressão e em reforçar a importância da História e do seu conhecimento na consciência política tão necessária estes dias. Sim, precisamos de filmes que apelem à ação política e transformadora, mas chega de Wachowski e dos seus heróis vazios.

O Melhor: A vontade de fazer um filme político, a animação.
O Pior: Apropriar-se do discurso revolucionário e esvaziá-lo.


João Miranda
(Crítica originalmente escrita em abril de 2014)

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