Terça-feira, 23 Abril

«Rio 2096: Uma História de Amor e Fúria» por Roni Nunes

Desde que a historiografia abandonou parcialmente os grandes heróis do passado para focar-se numa abordagem de cunho social sobre pessoas que o historiador espanhol José Andrés Gallego chamou de “gente pouco importante”, abriu-se uma via que cairia como uma luva no imaginário de uma certa cultura brasileira. Por outras palavras, trata-se de um mundo onde prevalece um sentimento poético de rebeldia, de revolta pelos desfavorecidos e que culmina numa fonte palpável de resistência política ainda bem vincada (diferente do que se passa na Europa). De resto, trata-se de um traço compreensível numa sociedade que ainda vê claramente diante de si grandes desigualdades.

Misto de um pouco de tudo isso, este exemplar do cada vez mais bem patrocinado/produzido cinema do país vai usar do artifício da imortalidade do protagonista para atravessar seis décadas de história do Brasil (o país só tem 500 anos, mas já lá se chega). Este personagem teve a infelicidade poética de nunca ficar, nas lutas históricas, do lado dos que povoam as praças com as suas estátuas mas sempre daqueles que são riscados da história.

Esse militantismo acompanha-o num voo quase didático sobre alguns episódios que, dada a multiplicidade de possibilidades, resultam em escolhas quase aleatórias do processo histórico brasileiro: as lutas dos índios contra o colonizador, dos escravos e mulatos oprimidos contra os senhores coloniais, dos guerrilheiros contra o regime militar nos anos 60. A evolução natural deste processo é uma ditadura distópica à Matrix, representada no Rio de Janeiro no ano que dá título ao filme e onde o herói, para não variar, fica do lado dos rebeldes que lutam pela água. Intercalado, há uma trama romântica que, contra todas as expetativas, até se revela um recurso narrativo válido.

O problema é que aquilo que mais interessa num filme, ou seja, as personagens e o enredo, ficam soterrados pela grandiosidade da produção e de algumas cenas de ação. Neste sentido, o último “episódio” é o que melhor exemplifica esta ideia: com um visual extremamente eficaz, a trama fica reduzida a um fiapo de reminiscências “wachowskianas” sem maior interesse.

Ainda assim, permanece qualquer coisa com o espectador depois da projeção, quanto mais não seja pela simples contraposição àquilo que filósofos como Jean Baudrillard denunciam hoje como uma tentativa por parte do sistema de apagamento da história: “viver sem conhecer o passado, é caminhar no escuro”.

O Melhor: a dimensão poética e filosófica que o filme consegue, por vezes, alcançar
O Pior: um apanhado de peças soltas que não funcionam como um todo


Roni Nunes
(Crítica originalmente escrita em março de 2014)

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