Quarta-feira, 24 Abril

«Only Lovers Left Alive» (Só os Amantes Sobrevivem) por Roni Nunes

Um plano sobre um single em vinil introduz o espectador à galeria de antiguidades de Jim Jarmusch. O artefacto pertence a Adam (Tom Hiddleston), um vampiro muito cool que coleciona guitarras antigas e vive numa espécie de bunker não subterrâneo, cercado de fios, instrumentos musicais e livros por todos os lados, escondido numa Detroit de bairros inteiros reduzidos a uma condição fantasmagórica depois da indústria automóvel ter se arruinado de vez.

Mas nem tudo corre bem na sua vida milenar: depois de anos a ver os zombies, como chama os humanos, a fazer disparates, ele está cansado e deprimido. Para lhe dar um ânimo, a sua afetuosa esposa de muitos séculos, Eva (Tilda Swinton), resolve abandonar o seu refúgio em Tânger e ir visitá-lo. Como vampira e, ainda para mais, uma criatura de Jarmusch, ela também é finíssima – possuindo um dom particularmente útil: consegue ler os livros através do tato, bastando um rápido toque numa página da sua enorme biblioteca de exemplares empoeirados.

Nada poderia dar mais jeito a uma personagem deste glossário de citações que é Only Lovers Left Alive. Da literatura ao rock, em momentos anedóticos de diversão garantida, o cineasta indie vai empilhando referências de uma forma alucinante, chegando ao ponto de ressuscitar (como vampiro) o próprio Shakespeare – adotando a teoria de que foi Christopher Marlowe (vivido por John Hurt) quem escreveu a obra do dramaturgo inglês.

Mas há mais aspetos que tornam esse filme uma relíquia saída diretamente dos anos 80. Trata-se de um cinema de apuro visual, com vampiros de óculos escuros em discotecas que remetem ao The Hunger, de Tony Scott, uma das obras que se tornaria icónica desta década ao conjugar uma enorme beleza plástica com quase nada para dizer. Esse vazio, paradoxalmente personificado em personagens soterrados de alusões ao passado, adequa-se perfeitamente á nova era que os eighties anunciavam e que estão sintonizadas com algo que Adam reitera ao longo do filme: “já não existem heróis.

Feito de prazer sensorial, não é nada difícil deixar-se embalar pelos acordes atmosféricos das guitarras de Jozef van Wissem, compositor da banda sonora. Mas quando Jarmusch dá como uma única variação dramática (curiosamente a mesmíssima de Kiss of the Damned, filme de vampiros igualmente plástico de Xan Cassavettes) a visita de uma irmã inoportuna de Ava (vivida por Mia Wasikowska), com a partida dela o filme arrasta-se tão sem rumo como o casal. Mas já contando com o seu conhecido dom de revelar boa “world music“, a coisa se reergue com a performance da cantora libanesa Yasmine Hamdam, cantando num bar em Tânger. É agradável, mas com estes atores e com a capacidade do realizador, fica a sensação de que o filme poderia ser melhor.

O Melhor: as atmosferas alcançadas com a banda sonora de Jozef van Wissem; Tom Hiddleston
O Pior: o último terço é totalmente sem rumo


Roni Nunes
(Crítica originalmente escrita em novembro de 2013)

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