Quinta-feira, 25 Abril

«Alceste à bicyclette» (De Bicicleta com Molière) por Roni Nunes

Parecem não haver limites para o que podem conseguir filmes com apenas dois personagens centrais. Basta lembrar os enormes resultados de obras tão diversas quanto Antes do Amanhecer (uma trilogia inteira feita assim) ou o recente Gravidade. De Bicicleta com Molière, que a certa altura vai contar com a participação crucial de uma terceira personagem, vive quase inteiramente dos diálogos de um velho ator retirado, Serge Tanneur (Fabrice Luchini, co-autor do argumento) e outro mais jovem, Gauthier Valence (Lambert Wilson), bem-sucedido e cheio de boas intenções (das quais o inferno está cheio, como se sabe…).

Tanneur, farto do meio artístico, pleno de falsidades, vaidades e hipocrisia, exilou-se na Ilha de Ré (próximo a La Rochelle), onde cortou totalmente os seus laços com o mundo externo. E lá estava ele, a discutir com um encanador a propósito de uma saída de esgoto que lhe deixa a casa com um cheiro terrível, quando chega Valence, que está numa popular série de televisão, nas capas das revistas cor-de-rosa e que, cheio de dinheiro, resolveu ousar: levar ao teatro uma peça de Molière, O Misantropo. E quem melhor para auxilia-lo nesta árdua tarefa que um velho fã do dramaturgo do século XVII?
Mas um dia não basta para convencer um verdadeiro misantropo a encarnar o outro, até porque Wilson nem lhe quer dar, à partida, o papel de Alceste – o do protagonista, o homem que abandonava tudo para viver no retiro. A repetir o comportamento dos personagens da peça original, onde Filinto era um amigo preocupado e que respeitava os posicionamentos de Alceste, os dois vão interagir (e trocar papéis) numa semana em que vão ensaiar exaustivamente. As manipulações recíprocas, subtilezas e crueldades que sobrevêm daí vão servir a Philippe Le Guay, realizador do excelente Os Encantos do 6º Andar, fazer um belo e muito engraçado registo sobre amizade, misantropia, hipocrisia, amor romântico e, principalmente, a natureza da arte e do meio artístico.

Há ecos de Dentro de Casa, outro filme magnífico a enveredar pela metalinguística e com Luchini no papel principal. A diferença é que ele aqui está longe de ser um mestre ingenuamente manipulado pelos ardis de um génio precoce e, pelo contrário, mostra por vezes uma personalidade calculista e plena da amargura de um verdadeiro misantropo – e que só encontra um alívio ocasional diante da presença da italiana Francesca (Maya Sansa).

O filme por vezes ameaça derrapar nas suas longas imersões nas declamações teatrais, mas isto termina por não acontecer. Primeiro pelos facto dos acontecimentos que ocorrem fora dos ensaios serem em número e interesse suficientes mas por, principalmente, ser justamente ali, nas nuanças e na autorreferência, que esta obra encontra os seus grandes momentos. São magníficos os episódios nos quais os atores, especialmente Luchini, vêm à superfície com a fúria iconoclasta de Alceste. Tudo com um final digno – onde fica provado que o artifício da representação está ao alcance de muitos, mas a sua essência ao de muito poucos…

O Melhor: Os dois atores, os diálogos, as encarnações de Alceste
O Pior: Muito pouco mas, eventualmente, alguns excessos teatrais


Roni Nunes

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