Terça-feira, 23 Abril

«Watchmen» (Os Guardiões) por Carlos Natálio

Vinte e três anos depois da 20th Century Fox ter adquirido os direitos de “Watchmen”, a novela gráfica de Alan Moore, “Watchmen”, o filme, é uma realidade. Desse hiato, motivado por sucessivos adiamentos do projecto e conflitos na cedência de direitos, poderá dizer-se o que sempre se diz: que a ele estiveram ligados vários realizadores (a saber, Terry Gilliam, Paul Greengrass e Darren Aronofsky), o que gerou expectativas elevadas, que angariou apoiantes e detractores. Entre estes últimos, o próprio Alan Moore que, após o falhanço de “The League of Extraordinary Gentlemen” disse que não queria saber do filme para nada e que não o veria nem sequer se lhe oferecessem o dvd.

Mas mais relevante talvez será pensar este hiato como uma “continuação” do percurso acidentado que deu origem à própria novela. Na altura, Moore queria pegar num grupo de super-heróis existentes e puxá-los para o seu lado mais negro, significando isto o questionamento sobre o poder e papel destas figuras na sociedade. À altura, os chefes da DC, não querendo pôr em risco os lucros da empresa e suas principais figuras, apoiaram a ideia mas travaram-na na sua origem. Disseram a Moore que podia “brincar” à nostalgia, sim senhor, com o negrume das suas personagens, tudo certo, mas teria que o fazer por sua conta, ou seja, inventar heróis de raiz. Moore assim fez. Mas o próprio cinema já o demonstrou por diversas ocasiões que nestas histórias de “censura” capitalista, a imaginação acaba por tornear a coisa. Por isso, Moore criou a sua galeria de personagens com oblíquas referências às tais figuras intocáveis da DC (Super-Homem, Batman, Flash, etc) e colocou-as em crise de identidade numa América de Nixon muito negra, em meados dos anos oitenta. Em “Watchmen” vive-se em plena paranóia da iminência de uma guerra nuclear como escalada derradeira da Guerra Fria. As ruas estão cheias de sangue e já não há heróis. Os outrora vigilantes que patrulhavam as ruas com a sua identidade encoberta deixaram de ser necessários e recordam amargamente o passado em que se sentiam úteis. No presente, a América repousa as suas únicas esperanças no único herói com verdadeiros super poderes, Dr. Manhattan, a sua “bomba atómica” privada.

Este era portanto o ponto de partida com que Zack Snyder, o realizador de “300”, entretanto contratado para o projecto, tinha de trabalhar. Obviamente que a ideia era ser o mais fiel possível à novela, tendo o próprio cineasta admitido que o seu story board e as pranchas da banda desenhada original se confundiram no processo de criação. Mas essa fidelidade ao original tinha muito que se lhe diga. Porque muito do que constitui o poder da novela era em si mesmo, mais do que uma visualidade própria, um storytelling complexo que reunia sequências de acção, extractos de poesia, diálogos pulp, fragmentos de diários, capítulos biográficos, etc. Assim, a questão mantinha-se: qual seria a estratégia de fidelização à essência dessa poderosa reflexão sobre a nostalgia e vazio de poder que é “Watchmen”, ainda hoje estudado em muitas universidades por esse mundo fora?

Ao ver os 163 minutos de duração da obra de Snyder percebemos que essa literalização do universo BD, porque impossível, se converte em compressão. Por isso, “Watchmen” é um filme de acção lento, com preocupações descritivas e inter-penetração de vários discursos. Parece que estamos a dizer mal mas até nem estamos. As linhas narrativas essenciais da história: a morte de um dos watchmen – o “comediante” – a estrutura whodunnit, os flashbacks para as backstories dos outros heróis, mantêm-se. São é “apanhados” numa floresta por vezes impenetrante, por vezes atractiva, de referências à época, sequências de acção em slowmotion, ambiências eighties, que convertem “Watchmen” num saudável mistério intelectual. É muita dessa impenetrabilidade que consegue escapar a fórmulas, que permite, no fundo, dar visibilidade a esse sentimento “fin de siècle” que Alan Moore tinha medo que ninguém conseguisse filmar como ele o contou. Obviamente que alguns dos bordões do género fantástico se mantêm, mais como âncoras de audiência do que como necessidade de verosimilhança.

Um dos aspectos mais curiosos da novela de Alan Moore era o facto de o presente dos anos oitenta ser concebido como um tempo em que os heróis passaram de moda. Havia uma espécie de esforço de recuo que mostrava ao anos quarenta como o período áureo dos super-heróis, onde a crise presente dispensava, desalentada, os heróis, em vez de os reclamar. Na versão cinematográfica esse traço não deixa de ser caricato. O cinema do Sec. XXI a olhar os anos oitenta, a olhar os anos quarenta com nostalgia, produz o interessante efeito de duplo recuo. Uma evolução ao inverso, uma vez que sempre pensámos o universo dos super-heróis como uma realidade própria do futuro. Tecnicamente esse “recuo” permite repensar o postiço deste universo com um carinho nostálgico, quando sempre os heróis nos inspiraram admiração. E o filme de Snyder consegue dar-nos essa perspectiva, com os fatos pesadões e grossos dos heróis ou com a banda sonora deliciosamente distractiva de Paul Simon ou Bob Dylan a construir os ambientes.

Voltemos ao início. Vinte e três anos depois “Watchmen” é feito. E é impossível não arrancar um sorriso sarcástico ao espectador mais incauto ao perceber que tão vincado elogio do vazio ante a crise de valores dos “eighties”, após tanto tempo de espera, tenha ela conhecido a sua visão cinematográfica, apenas agora, no epicentro dessa outra crise material e económica que vai consumindo o pensamento contemporâneo.

O melhor: o Rorschach de Jackie Earle Haley
O pior: a espessura do filme diminui à medida que caminhamos para o final

 
 
 
Carlos Natálio
 
 

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