Terça-feira, 23 Abril

O virar de mais uma página dos Cadernos de Cinema. A Crítica como arte ainda menor.

A Crítica de Cinema enfrenta os maiores desafios quanto à sua sobrevivência e a situação da Cahiers du Cinéma é uma dessas provas. 

O Cahiers du Cinéma não inventou a crítica de cinema, mas reinventou a nossa ideia de crítica em cinema, colocando essa manifestação no patamar intelectualizado, pessoal e transgressor dos fixos métodos de mercado e que, por sua vez, rebelava contra os ensinamentos de uma vaga anterior (Marcel Martin, Georges Sadoul e Jean Mitry que esculpiam as terminologias da estética). 
 
Durante anos, os ditos “cadernos amarelos” tornaram-se gurus do próprio ato de pensar em cinema, enquanto fomentavm um novo leque de cineastas-escrivãos que iriam lançar-se na indústria e perpetuar novos “movimentos” cinematográfico – A Nova Vaga, o Cinema Novo ou Vanguarda – que teria epicentro em território francês, nos anos ‘60, e como pássaros estivais “migrariam” para outras regiões do mundo (Portugal foi um deles). Os EUA embarcou na aventura na década seguinte, após as constantes resistências ao “cinema estrangeiro”, criando assim a Nova Hollywood. Foi essa publicação que acolheu alguns dos maiores pensadores cinematográficos de que há memória, desde o pai André Bazin, até aos seus mais fieis filhos Jean-Luc Godard e François Truffaut, até ao marginal que encontrou palco para a sua voz Serge Daney, que viria experimentar em 1991 o slow-critic da revista Trafic.
 
Obviamente que mais se seguiram, os “filhos”, os “usurpadores”, os “anarcas” e os “fieis”. A crítica ramificou-se para vários estilos, formatos e correntes ideológicas muito graças à Cahiers, pela sua representação de crítica livre e pensada. E com isso, é triste depararmos-nos com o seu presente.
Com as notícias de uma demissão em bloco devido a novos acionistas e a iminente intervenção de produtores que anseiam uma revista “chique”. Os jornalistas e críticos da Cahiers du Cinéma temeram pela sua liberdade, e devido a esse ato de bravura e de ética, que vai para além do código deontológico, mereceram fortes aplausos de coragem, o de “heróis” num tempo em que a comunicação social, seja de que plataforma seja, tem estado constantemente diluída nas grandes cooperações e à mercê do constrangimento político-social pelo qual se regem.
 
Cahiers du Cinéma é por si uma marca histórica associada a essa mesma história, e devido a isso muitos cinéfilos têm estado solidários a esta luta, a esta prova de risco que colocará a crítica de cinema numa posição (ainda) mais fragilizada. Mas recordo que não há muito tempo, esta publicação revelava um top de década que fora repudiado por muitos dos que hoje abraçam a sua causa. E essa renegação foi acompanhada por um constante invocar da história, de Bazin a Truffaut, Godard a Rivette, Rohmer a Daney, e também a memória de Douchet. Porquê?
 
A grande lição da Cahiers esteve sempre na grande emancipação e com isso a própria responsabilidade dos seus escritos em relação ao cinema contemporâneo. Os ditos ‘Cadernos Amarelos‘ são prova disso, do cinema pensante que não necessitava do academismo, nem das leis de mercado, mas hoje, com a difusão das redes sociais e a inabalável legitimidade da opinião (cada vez mais confundida com a arte da crítica de cinema) torna-se difícil separar a cinefilia da própria presunção snob (ou vaidade, esse tal pecado fatal e fatalista), ou do vampirismo dos ‘filosofares’ de outros. Tornou-se mais fácil apontar o dedo à Cahiers e não apenas questionar as suas ideias, mas desprezá-la à luz de outras, muitas delas vencidas pelo tempo e pela sua cadência. A crítica tornou-se irrelevante. É triste pensar e sublinhar isto, mas é bem verdade que essa arte, que muitos tentavam erguer como tal, encontra-se ameaçada pelos mais diferentes inimigos.
 
O mar de opiniões, a indústria predominante e interveniente (tido como subsistência), o consenso que muitos desejam construir como instituição e até mesmo a “necrofagia”, némesis que vêm contaminar a auto-estima da dita crítica de cinema, tornando-a uma peça sobresselente de qualquer publicação ou meio. Perde-se a agressividade, perde-se a noção, o bom-senso e acima de tido, a honestidade intelectual.
 Lady in the Water (M. Night Shyamalan, 2006)
Os jornalistas que abandonaram a Cahiers por princípios éticos, certamente serão visto como guerreiros da última estância da crítica cinematográfica, porém, todos nós deviamos fazer “mea culpa” neste cenário, pois desprezamos toda essa jornada ao encontro de novas formas de pensar no cinema, modernamente falando, para alimentar o respetivo ego. Sim, hipocrisia, e nisso não deveremos esquecer.
 
Enquanto isso, a crítica de cinema não morreu … continua a resistir em algumas “habitações”, só que não anda bem de saúde. 

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