Quinta-feira, 18 Abril

O retrato de uma mulher do século XVIII leva Cannes ao rubro

Cannes ficou deslumbrado com Portrait de la jeune fille en feu, a mais recente obra de Céline Sciamma, que se encontra na disputa pela Palma de Ouro. 

O visionamento de imprensa no Grand Theatre Lumière terminou com a mais entusiasmada reacção por parte do seu público nesta 72ª edição. A euforia teve lugar, e nós ficamos com uma certeza: este filme não sairá da Croisette sem prémio.

À primeira vista, o argumento, também ele da autoria de Sciamma, parece levar-nos de volta a 1993 com o galardoado O Piano de Jane Campion, até à data o único filme realizado por uma mulher com a Palma de Ouro no currículo. A chegada de uma artista à praia de uma ilha da Bretanha, carregando caixas e os seus bens mais preciosos (neste caso, as telas), tem algo de paralelo com a imagem de Holly Hunter no seu embarque na Nova Zelândia. Mas as semelhanças são apenas isso … semelhanças … porque a nossa dita protagonista – Marianne (Noémie Merlant) – vem cumprir um serviço: fazer o retrato de uma jovem para fins matrimoniais.

Enquanto filme de época, deparamos com um tempo em que a imagem na tela adquire uma importância mais do que somente um artefacto de adorno ou de manifestação artística. Essa representação assume uma posição de status e é através disso que são concretizadas diversas relações económicas-sociais. E o cuidado do desenho é a prioridade de Marianne, embora no processo da criação tropece no magnetismo da misteriosa figura da sua cliente, Héloïse (Adèle Haenel), que inicialmente recusa posar. A partir daí, surge um jogo de sedução que vai constantemente debater a condição feminina da época.

Mas é quando Héloïse decide, por fim, posar para Marianne, que o filme sai das suas amarras de mero pastiche histórico, deambulando por um cinema fantasmagórico e inerentemente ardente. Jean-Claude Brisseau deixou-nos somente há poucas semanas, mas é um facto que sentimos aqui uma réstia da sua vida no convívio espectral que Portrait de la jeune fille en feu estabelece entre a carnalidade dos corpos das atrizes até às premonições de um fim próximo: “Porque que é que os amantes sempre pensam que estão a inventar o romance?“. Não se fica pela coincidência o nome da realizadora com o filme Celine de Brisseau, ou do referido contrato com as entidades extranaturais, mas também a exploração do prazer feminino, embrulhado sob uma definição de romance platónico, que já por si é um dos temas cada vez mais tabus para direções masculinas.

Em Portrait’ a lente é meramente feminina, o que aufere uma certa delicadeza aos temas expressamente sensuais, e … como credível reconstituição histórica, mas adquirindo um portento de redefinição dos parâmetros da beleza do tempos em que vivemos; as axilas peludas em corpos femininos que são inteirados no campo do erotismo. É uma cena curta que dará que falar, muito mais na preocupada imprensa norte-americana que sempre cora sob o efeito nudez no Cinema.

Por fim, Portrait de la jeune fille en feu encerra com uma tremenda tempestade emocional na expressão e a ofegante respiração de Adèle Haenel, onde os acordes operáticos atribuem o tom épico hipotético que esta belíssima peça sensivelmente investe.

Temos forte candidato à Palma de Ouro.

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