Sexta-feira, 19 Abril

De Pasolini a Eugène Green: O espírito apesar de tudo

À exibição (no passado 7 de Abril de 2019) do filme Le Monde Vivant (2003), do francês Eugène Green, no âmbito do Colóquio ”Cinema de Poesia”, seguiu-se uma informal conversa entre mim e o organizador, Tiago Ferreira, no espaço do Cineclube Mundo, na CrewHassan. Adequando a proposta ao espírito underground do mais marginal dos cineclubes de Lisboa, escolhi um título raramente visto dentro da obra de um cineasta que tem crescido em progressiva relação com o contexto português [tendo realizado os filmes, A Religiosa Portuguesa (2009) e Como Fernando Pessoa Salvou Portugal (2018), no nosso país] e tendo sido distinguido com o principal prémio da 1ª edição do IndieLisboa com, precisamente, Le Monde Vivant. Com a obra de ficção de Eugène Green como fio-condutor e o cinema de Pasolini a desenhar a moldura geral, produzi o pequeno vídeo-ensaio ”Canção de Luz” que, criado para o certame, ali procurava abrir a discussão para o icónico estilo de um realizador em permanente resgate de uma hipótese de divino.

NA IMAGEM: O Evangelho Segundo S. Mateus, Pasolini, 1964


NA IMAGEM: A Religiosa Portuguesa, Eugène Green, 2009

O que vai de Pasolini a Green? Colocar em perspectiva um cineasta desaparecido em 1975 ao lado de um cineasta que começou a trabalhar em 2001 é ensaiar uma travessia do cinema do século XX para o século XXI, expandindo definições possíveis para a relação entre linguagem cinematográfica e o espírito do tempo. Com o filme Le Monde Vivant por eixo, fixo 12 FRAGMENTOS como chaves que abrem traços simultâneos aos cinemas de Pasolini e de Green:

 

1) QUE IMAGENS AINDA NÃO VIU A POESIA?

”A língua da poesia é aquela onde se sente a câmara, como na poesia se podem sentir imediatamente os elementos gramaticais de função poética. Na língua da prosa, não sentimos a câmara.” (Pier Paolo Pasolini, in Empirismo Erético, 1972)

”Não procuro ser antinatural mas procuro captar o que está escondido na natureza. O naturalismo de muitos filmes é realmente falso, pelo menos é o que me parece. Na trama de um filme, os personagens não olham para câmara, eles olham entre si, como na vida real. Mas, para que o espectador receba plenamente o olhar de um personagem com o outro, sinto-me livre para colocar a câmara entre os dois personagens. Isso dá, tecnicamente, um ‘olhar para a câmara’, um pecado mortal, segundo às regras académicas. Essa estética surgiu espontaneamente ao longo da criação do meu primeiro filme e, como ela me convém, continuo a segui-la.” Eugène Green

Eugène Green e Pasolini trabalham sobre a realidade, em suma, a partir da sua representação esquemática. De formas diferentes, longe da pedagogia do espectador, das ambições naturalistas da mimesis ou da construção tautológica inscrita pelos cânones da linguagem cinematográfica, preservam uma consideração alargada da experiência humana através das eras, construíndo filmes que relevam o misticismo como um ingrediente-chave de um cinema de poesia.

”Que interesse há em mostrar a um espectador um plano de nuvens, se ele não vê aí outra coisa a não ser o que ele percebe, de manhã, ao olhar pela janela?” Eugène Green (in Poétique du Cinématographe)

Pasolini

 

2) SÃO CANÇÕES QUE A LUZ CANTA.

”A oposição entre palavra e luz, como o iconoclasmo, é uma manifestação de puritanismo, uma manifestação intelectual que exclui uma parte da apreensão do mundo.” Eugène Green (in Poétique du cinématographe)

Uma abordagem original à sintaxe cinematográfica corresponde a um alicerce conceptual preciso, fixado por Green de filme para filme. Emoldurando um palavroso cinema, constrói-se um estilo como um tratado sobre a interpelação sinestésica. O objectivo é assumido: ensaiar uma hipótese de divino. Luz e sombra, matérias constituintes de uma imagem, são colocadas ao serviço da hipótese iconográfica: poderá o Divino figurar-se?

”Deus não aparece directamente nem a Abraão, nem a Isaac, nem a Jacob: a sua voz chega através de visões, de sonhos, da palavra dos anjos, mas não se revela. Aparece a Moisés, agora pela visão, pela luz de uma árvore a arder.” Eugène Green (in Poétique du cinématographe)

“Da vela à lamparina a óleo, desta até ao bico de gás, deste até ao candeeiro com lâmpada eléctrica – ele não descansa a sua demanda por visibilidade, ele não poupa esforços para erradicar as mais ínfimas sombras.” Jun’ichirō Tanizaki (in Elogio da Sombra)

O que nos ensina de primordial o fogo? Estará a verdade, como está o amor, à luz das velas? Estaremos mais próximos da origem debaixo do sol? O que significa associar luz a divino quando existe electricidade?” Estas são perguntas provocatórias convocadas ao longo dos três capítulos [que compõem o vídeo-ensaio Canção da Luz, 2019], onde se distinguem as três principais fontes de luminosidade que surgem no cinema de Green: as baseadas em fontes primordiais – o Sol e o Fogo – e aquela que simboliza a modernidade – a Electricidade. Perpassando, sem excepção, todos os filmes, há um emblemático destaque para a iluminação através de tocha ou vela no cinema de Eugène Green. No entanto, ainda que o progresso técnico os substitua pelo candeeiro eléctrico, Eugène Green suspende subtextualmente uma dúvida. A sua inquietação é de raiz espiritual: será que a hiper-visibilidade sobre os espaços traz realmente alguma iluminação à presente existência humana?

 

3) A ”ARQUITECTURA DO DIVINO”

”Hoje quero saber se esta específica penumbra vive na sombra da luz, ou se a luz nasce no inverso da penumbra. Hoje quero saber que conforto é este ainda que esteja sentado num banco de pau, que calor é este ainda que as pesadas pedras nas paredes vedem qualquer possibilidade de deixar entrar o ar quente da rua, que claridade é esta ainda que não consiga ler o missal que estava no meu banco. Hoje quero saber os limites desta transcendência. Como é que as paredes delimitam o espaço sagrado? Como é que algo intocável finda em quatro paredes?” João Granjo (in Chiesa di Sant’Andrea della Valle)

NA IMAGEM: Stonehenge, Inglaterra, 3001 a.C.
NA IMAGEM: Newgrange, Ireland, c. 3200 BC

Rituais de celebração dos solstícios e equinócios repetem-se, ao longo da História da civilização humana, de cultura para cultura. Dos Maias aos Egípcios, dos Incas aos Druídas, provam-nos os inúmeros edifícios e monumentos construídos com atenção ao alinhamento dos astros a relevância dada à luz solar como elemento participante. Da ancestral ligação entre luz e deus, monumentos como Stonehenge assinalam os dias em que o sol está mais próximo da terra como poderosos rituais de passagem, revelando a vibração dos raios solares como evocativa de uma presença divina.

 NAS IMAGENS: La Sapienza, Eugène Green, 2104

 NA IMAGEM: Le Fils de Joseph, Eugène Green, 2016

La Sapienza (Eugène Green, 2014), que pede emprestado o título à arquitectura barroca de Borromini, desenvolve-se em Roma, com os diálogos entre um arquitecto experiente e um jovem estudante de arquitectura por base. Aqui, reflecte-se sobre a busca pela beleza como algo que está mais próximo do fazer do que do dizer e é com a arquitectura religiosa como cenário que se medita sobre o sol como elemento participante no espaço de culto. Se as obras de Borromini respondiam a pedidos de ordens religiosas, mantendo a harmonia da proporção neoclássica e uma perfeição característica ao desejo barroco de causar espanto, aqui conversa-se – no presente – sobre a possibilidade de uma arquitectura espiritual sem associação directa a uma Igreja.

”Ainda que a cúpula não nos deixe ver o céu directamente, podemos ver a sua luz.” sobre Borromini em La Sapienza, Eugène Green, 2014

NA IMAGEM: interior da Basílica de S. Pedro, Vaticano

NAS IMAGENS: La Sapienza, Eugène Green, 2014

A arquitectura do Império Romano mesclou-se à construção da catedral católica, desenvolvendo o formato da basílica, tão popular em Roma. Elementos primordiais como o Sol incorporam o planeamento destes espaços sagrados, onde as cúpulas são construções habituais. Tal como na Basílica de S. Pedro, considerada como o mais importante edifício católico do mundo, o feixe de luz que entra pela verticalíssima janela cupular toca quem o atravessa. Quem se movimenta no espaço é forçado a colocar-se numa posição específica, de rosto voltado para cima, para também poder observar o céu, visível desse orifício. Nesta dialéctica baseada na relação entre a medida humana e a escala da arquitectura, está inscrita a intenção (que perpassa toda a arquitectura religiosa) de sublinhar a magnífica monumentalidade do espaço divino, incorporando a luz como elemento definidor e adicionando uma carga simbólica que privilegia a adoração à entidade religiosa.

”Desde os meus estudos de História da Arte que, na década de 1970, fiquei fascinado por Borromini que, para mim, é um grande místico e artista, que segue o seu caminho a todo custo, mesmo que isso feche a porta do sucesso social. Nisso, ele era o modelo contrário de seu rival Bernini.Devo sentir alguma identificação com ele. Desde a época em que fazia teatro, entre 1977 e 2001, chamei à minha companhia de teatro de La Sapience.” Eugène Green

Eugène Green estudará continuamente, através do seu cinema, a associação entre iluminação e transcendência (num sentido espiritual liberto de uma religião específica), e a possibilidade da sombra persiste análoga à evocação do mistério, aludindo às eternas dúvidas do espírito. Acerca da incompreensão pelos que temem a ausência de luz, ouve-se em En Attendant Les Barbares (2017): ”Eles são crianças por isso têm medo do escuro.

NA IMAGEM: La Sapienza, Eugène Green, 2014

 

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