Terça-feira, 19 Março

Berlinale 2019: surpresa à italiana, excelência à brasileira e lista do melhor

 

Quando Lazzaro Felice estreou, a sua realizadora, Alice Rohrwacher, disse a verdade do que se passa em solo italiano, entre os cineasta: “A Itália é um país mitológico no cinema. Isso  gerou um património rico, mas também um impasse: cada novo filme que fazemos parece ter pela frente o desafio de fazer jus à nossa identidade histórica nos ecrãs“, disse a diretora, laureada em Cannes, com o prémio de melhor guião.

Não lhe falta razão, mas há conterrâneos dela que usam essa tradição como combustível, sem medo de reverências, como se vê nas múltiplas referências a Salvatore Giuliano (1962), de Francesco Rosi, em Piranhas, sensação atual da briga pelo Urso de Ouro do 69º Festival de Veneza. O seu título original: La Paranza dei Bambini. A produção foi ovacionada na capital da Alemanha, estreando no seu país de berço já neste fim de semana.

Tem uma novíssima, e inspirada, geração de realizadores italianos chegando ao grande ecrã a fim de restaurar o prestígio que a terra de Fellini um dia teve, entre o neorrealismo e a ascensão de Silvio Berlusconi, nos anos 1980: Laura Lucetti (Fiore gemello), Edoardo De Angelis (Il vizio della speranza) e Diego Marcon (com a animação Monelle) andaram pelo mundo afora em 2018. Mas depois de ontem, quando a Berlinale viu Piranhas, o nome da Itália que salta para o estrelato é o de Giovannesi, realizador romano de 40 anos. Fala-se no Urso de Prata, na forma de um prémio especial de júri, ou até de um troféu coletivo para os seus (não) atores jovens, todas as vezes em que este espetáculo etnográfico e sociológico é comentado. Trata-se de uma rasante na dinâmica da máfia napolitana, escrita por Roberto Saviano, escritor jurado de morte pela Camorra responsável pelo marco histórico Gomorra (2008). Ele aqui acompanha a jornada da perda de inocência de um grupo de jovens seduzidos pela criminalidade, tendo como líder Nicola (Francesco Di Napoli). Espera-se apenas que Giovannesi não seja esquecido pelo júri presidido por Juliette Binoche, como aconteceu ano passado com Minha filha (Figlia mia), de Laura Bispuri.


Greta

Na mostra Panorama, Marco Nanini, um dos mais respeitados atores brasileiros nos palcos e na TV, fez jus à sua estrela e à sua estrada profissional à frente de um melodrama à moda de Fassbinder, vindo do Ceará: Greta, de Armando Praça. Livremente inspirado na peça Greta Garbo, quem diria, acabou no Irajá, de Fernando Mello, este devastador estudo da solidão no universo LGBTQ de Fortaleza, o coração cearense, dialoga com o Fassbinder de O Medo Come a Alma (1975) na sua mirada para relações de afeto que acontecem em instâncias de conflitos sociais. No caso, estamos no setor da Saúde: Nanini (majestoso) vive Pedro, gay de 70 anos que ganha a vida como enfermeiro em um hospital público onde mal consegue leitos para sua amiga Daniela (Denise Weinberg, dona absoluta de algumas sequências memoráveis), uma mulher trans, que faz shows na noite. Na luta para ajudar sua velha parceira, este fã dos filmes de Garbo, que goza sendo chamado pelo nome da diva, esbarra com um paciente acusado de assassinato (Demick Lopes, uma das promessas de nosso audiovisual). Entre eles vai brotar um convívio emotivo que o fotógrafo Ivo Lopes Araújo filma com luzes de aparência pálida, com sombras, com a sensação ótica de “chiaroscuro”. É uma forma de traduzir o estado de vidas que vivem na penumbra do afago, a esmolarem carinhos os orgasmos na coragem de assumirem o que são. Que bem faz a um peito brasileiro ver Nanini no cinema.

Agora que a Berlinale está quase a acabar, vale um balanço das jóias encontradas até aqui.

Skin, de Guy Nattiv

Jamie Bell tem uma atuação desconjuntante no papel de um supremacista branco, tatuado dos pés à cabeça, que, ao se apaixonar por uma mãe solteira (a excecional Danielle Macdonald), decide largar a célula neonazista onde cresceu e virar um sujeito avesso a intolerâncias raciais. Montagem avessa a clichés.


 

A Portuguesa, de Rita Azevedo Gomes

Com uma direção de arte estonteante, este ensaio sobre a potência poética das fragilidades se estrutura a partir das artimanhas de uma mulher da Idade Média que tenta transformar um castelo num lar.


 

God exists, Her name is Petrynia, de Teona Strugar Mitevska

Vem da Macedónia o favorito ao Urso de Ouro. Nele, uma historiadora desempregada é alvo de sexismos e conservadorismos ao se apoderar de uma cruz da Igreja Ortodoxa em que só homens poderiam pegar. Igualdade de gêneros e fundamentalismo religioso são seus alvos.


 

The Golden Glove, de Fatih Akin

Uma espécie de Nosferatu de carne, osso e feiura, Fritz Honka (1935-1998), psicopata que assombrou Hamburgo, de 1970 a 75, matando e esquartejando garotas de programa, ganha uma cinebiografia digna de mestres do terror e do expressionismo das mãos do maior cineasta em atividade na Alemanha, o teuto-turco Fatih Akin (de “Contra a parede”). Jonas Dassler é o favorito ao Urso de Prata de melhor ator por seu desempenho assombroso como Honza.


 

Flatland, de Jenna Bass

Uma policial tenta investigar um crime em uma África do Sul que revela fantasmas nunca exorcizados do apartheid.


Light of my life, de Casey Affleck

O ator de Manchester by the sea (2016) utiliza o que de aprendeu de melhor com os grandes cineastas que o dirigiram (como Steven Soderberh, Kenneth Lonergan e o próprio irmão, Ben) para extrair de seu elenco uma dor à altura do mundo seco que constrói nesta ficção científica distópica. Ele vive um pai que quer salvar a filha dos perigos de um futuro no qual as mulheres da Terra foram dizimadas por uma doença misteriosa.


 

Divino amor, de Gabriel Mascaro

Dira Paes colocou Berlim no bolso ao viver uma Joana D’Arc de repartição pública neste trabalho de maturidade do realizador de Boi Neon, construído como uma reflexão sobre a fricção do corpo com o Estado. Escriturária num cartório, Joana (Dira) defende Deus sobre todas as coisas num Brasil futurista, de 2027, onde o carnaval deu lugar a uma rave de Cristo. Mas o Espírito Santo há de aprontar com sua fiel.


 

Mid90s, de Jonah Hill

O astro de Superbad (2007), duas vezes indicado ao Oscar Secundário (por Moneyball e O Lobo de Wall Street) estreou-se na realização recriando a época de sua educação sentimental, a década de 1990. Lá, entre pistas de skates, um rapaz assolado por bullying e solidão busca uma nova forma de se ressocializar. Isso narrado com uma fotografia que aposta na vertigem.


 

Tremores, de Jayro Bustamante

Cura gay é o assunto do realizador de Ixcanul, que volta a falar sobre descobertas sexuais e amadurecimento só que de uma perspectiva masculina: Pablo (Juan Pablo Olyslager) é um consultor financeiro que tem sua vida virada do avesso depois de decidir assumir-se homossexual e morar com o namorado.


 

The shadow play, de Lou Ye

O realizador de Amor e Dor (2011) faz uma reinvenção dos códigos do cinema noir num thriller sobre corrupção, no qual um jovem policial tenta averiguar o que há de errado na morte de um empresário.


 

Estou me guardando para quando o carnaval chegar, de Marcelo Gomes

Toritama é a capital brasileira do jeans, mas é também um lugar onde as pessoas optam por uma autonomia profissional, avessa aos grilhões da mais valia, a fim de se apropriarem do Tempo. Mas, usando um dispositivo digno do diretor Dziga Vertov, em seu O Homem da Câmara de Filmar (1929), Gomes faz uma observação (sensorial) do fluxo da vida naquele canteiro de linha azul e agulha em disparada para tentar entender o que torna a temporalidade algo tão inalcançável.


 

Système K, de Renaud Barret

Na lógica do luxo ao lixo, este documentário sobre formas de resistência estética nas ruas do Congo acompanha as estratégias de um grupo de multiartistas de Kinshasa que utilizam capsulas de balas, sucata de eletrodomésticos e caveiras para fazer instalações das mais provocativas. É um filme sobre o redesenho do espaço urbano.


 

Querência, de Helvécio Marins Jr.

Com ecos do cinema documental de Humberto Mauro, em especial Carro de bois (1974), esta experiência poética de observação do cotidiano de um tratador de gado, com sonhos de se firmar como locutor de rodeios, arrebata não apenas por sua potência visual, mas por sua denúncia da negligência das autoridades diante de crimes ligados a questões fundiárias. É um western sem bangue-bangue, num mundo onde a honra reza para Nossa Senhora.


 

Stitches, de Miroslav Terzic

A Sérvia brilhou nas telas da Berlinale.69 com um melodrama de uma centelha emotiva incendiária: Stitches (“Savovi”, no original), de Miroslav Terzic. O filme transforma em ficção, com uma potência trágica avassaladora, um crime histórico (e recorrente) nos países que um dia constituíram a Jugoslávia: o rapto de bebés, ainda na maternidade, onde as crianças eram dadas como mortas para seus pais e encaminhadas para adoção em territórios ricos do Velho Mundo. A trama de Terzic acompanha a angústia de uma mulher, Ana (Snezana Bogdanovic), que há 20 anos celebra o aniversário do filho que teria morrido ainda no berçário, bebé. Só que o Destino bate à porta de Ana com outra versão dos factos. Estaria o menino – hoje já um adulto – vivo?


 

Hellhole, de Bas Devos

Da pátria dos irmãos Dardenne brota este poderoso ensaio sobre a solidão numa Bélgica marcada por cicatrizes morais relativas à exclusão. Uma série de personagens – entre eles, um jovem árabe com dilemas políticos, um médico de classe média em crise com as atitudes de seu filho e uma tradutora italiana cheia de conflitos, vivida pela genial Alba Rohrwacher – vão se cruzar numa ciranda afetiva em Bruxelas.


Grâce à Dieu, de François Ozon

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No trabalho mais adulto de sua carreira, o realizador de Dentro da casa(2012) e outros sucessos recria um caso real (a ser julgado agora em março) de mobilização pública dos franceses contra um padre pedófilo. O brilho maior vem do argumento, que estraçalha a lógica convencional dos três atos, de modo a cada segmento narrativo dar conta de uma das três vítimas do sacerdote, vividas por Melvil Poupaud, Swann Arlaud e o brilhante Denis Ménochet.

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