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«Arábia», o memorável cinema do apenas

Nas horas finais de 2018, quando é uma vocação natural inventariarmos os nossos remates a golo e os nossos passos em falso, o balanço do cinema brasileiro aponta para a consagração de Arábia em relação a média das longas-metragens de ficção lançados nos nossos ecrãs, num ano de joias como Ferrugem, O Doutrinador, O Processo e O Grande Circo Místico.

A dica foi dada pelo escritor Luiz Ruffato, em As Máscaras Singulares, e os seus conterrâneos das Minas Gerais, os cineastas Affonso Uchoa e João Dumans [1], ouviram…e transformaram em imagem: “Onde quer que estejas, no teu país ou noutro, és um estrangeiro: ninguém da tua língua compreende. Só, o deserto de estranhas veredas percorres. Conservas, no entanto, dos primeiros anos, o albor, quando a tua cidade, madrasta e mãe, os teus sonhos na noite fresca velava. A grande mão que afagou-te esmaga o peito agora. Ah! Somos apenas o que somos. Apenas”.  Isso, que a poesia do autor do culto literário Eles Eram Muito Cavalos desvela, define Arábia, o filme brasileiro de maior potência entre os lançamentos nacionais de janeiro até agora. Ele é potente em sua decantação lírica (ainda que de um lirismo desesperançoso) do realismo. É o cinema do “apenas”, isto é, da perceção das singelezas (as belas e as dolorosas).  Faz a síntese poética das Gerais, lar de Ruffato, de Carlos Drummond de Andrade, de João Guimarães Rosa e de um novíssimo cinema de observação, como se vê neste ensaio sobre a andança como expressão de identidade.

Perfumado à morte, pois tem como narrador as memórias de um trabalhador acidentado, que arriscou transformar as suas mesmas memórias em épica, num rascunho de diário, Arábia abriu a sua trajetória de encantamentos pelo Festival de Roterdão, na Holanda – um canteiro de narrativas com instinto de experimentação formal. De lá, correram 49 mostras estrangeiras, indo de San Sebastián, a maior da Espanha, a Yerevan, na Arménia, passando ainda por Cartagena, na Colômbia, num percurso demarcado por dez prémios internacionais. Juntando a esses, ainda cinco troféus Candango, incluindo o de Melhor Filme, conquistado no Festival de Brasília de 2017 pela saga andarilha de Cristiano, vivido por Aristides de Souza.

À exceção de um preâmbulo cheio de lirismo, o resto do filme de Dumans e Uchoa é uma espécie de monólogo, que corre em contraponto às imagens, quase como uma banda sonora. E ela não direciona o olhar: este corre livre, como os pés de Cristiano, em sua errância quase inata. Esqueçam virtudes heroicas, Cristiano é “gente”. Somos nós: trabalha com mexerica aqui, vira metalúrgico ali, bebe com os amigos, desabafa, ama e se deixa amar por uma colega, num romance que condimenta sem muita pimenta a seu jeito a esmo de viver.

Não há projetos ou sonhos nele: há sim, deslocamentos. Cada posto é um aprendizado, para ele, para nós espectadores e para o jovem André (Murilo Caliari), que encontra o caderno de memórias de Cristiano (depois deste ficar gravemente ferido) no início do filme e engata a leitura, partilhando o saber do errar connosco. O maior achado: a simplicidade, argamassa com que o protagonista constrói o seu mundo interior, entre perdas e ganhos.      

Sem floreios ou adereços vaidosos na fotografia de Leonardo Feliciano, sempre atenta à composição de quadros rigorosos na habilidade de sintetizar os espaços por onde flana, a camara de Dumans e Uchoa lembra o dispositivo narrativo do mestre japonês Yasujiro Ozu (da nossa memória vem Early Spring). Segundo Ozu, impressões imediatas traem, observações ruminadas e pacientes libertam. Os mineiros filmam assim. E, apesar da palavra ser a bússola da nossa jornada pelas mil e uma noites de Cristiano, há muita contemplação silenciosa em Arábia.

O silêncio cumpre o papel de ser o som da reflexão, da autodescoberta, das convenções de um mundo que institucionalizou a opressão. A Minas do filme não é bucólica, não é árcade: é uma Minas operária, onde o ator de trabalhar dá subjetividade ao indivíduo. É um movimento parecido ao que se viu no obrigatório Redemoinho (2016), de José Luiz Villamarim [2], ambientado em Cataguases, só que mais ameno.  

Cartografia de rotinas mediadas pelas arte da sobrevivência, no corpo a corpo com a pobreza e a exclusão, Arábia é coroa do reino que Minas Gerais constrói para si no terreiro do cinema de invenção (e de exceção) de nosso audiovisual. Os seus realizador de agora partem de uma geografia particular para erigir uma estética universalíssima, abraçada ao Real e, por vezes, à fabulação, como é o caso dos realizadores André Novais Oliveira (em Quintal e Temporada) e Ricardo Alves Jr. [3] (Elon não acredita na Morte [4]).

Defendido na década passada por uma geração de realizadores nas franjas entre a videoarte e o documentário, como Marília Rocha (Aboio), Pablo Lobato (Ventos de Valls), Helvécio Marins (Nascente) e (sobretudo) Cao Guimarães (A Alma do Osso), o estado que, lá atrás, na prosa, nos deu a verborragia de Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Lúcio Cardoso, empodera agora as novas vozes cinéfilas, em sintonia com a questão do feminino e da representatividade negra. Cineastas como Juliana Antunes (Baronesa), Gabriel Martins (Nada), Ana Carolina Soares (Estado Itinerante) e a dupla Dumas e Uchoa (conhecida antes por A Vizinhança Do Tigre), mediados por uma nova crítica local (Marcelo Miranda é o principal farol analítico deles), criam uma nova ficção mineira. Surge deles uma espécie de odisseia da vida quotidiana, sem grandes assombros maiores do que a aventura de durar um dia a mais – e evidenciar beleza nisso.