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“Vox Lux”, ou quando Brady Corbet ousou ser pior

Numa das sessões de competição de Vox Lux, foi evidente que havia êxtase nos aplausos, mas também quem não aplaudiu nem quis esperar para assistir à conversação com o ator tornado realizador Brady Corbet, aqui a fazer a sua segunda longa-metragem, após ter arrancado um prémio precisamente neste festival com o seu filme de estreia: Childhood of a Leader

Perfeição vs ambição

Estamos já a meio da conversação quando Corbet admitiu que desta vez, ousou fazer pior (“to suck more“), e que isso para si é uma marca que une muitos dos seus filmes preferidos, não necessariamente perfeitos. Lança também o desafio: “o que é um filme perfeito?“. Vox Lux não o será, pese aparentar ter tudo no sítio, graças à sua estrutura em dois atos mais um epílogo, que cronicam, se não a infância de um líder político, como no seu filme anterior, a ascenção e uma queda de uma estrela pop: Celeste.

Engana-se no entanto o espectador que acha que vai ter aqui um mero retrato de celebridade isento de política – A Star is Born está em exibição na sala ao lado, para esse efeito. Há muito sim a unir/complementar o jovem futuramente fascista da obra anterior e uma estrela pop futuramente “Trumpiana” (Natalie Portman, a limpar o sebo à segunda metade da película com uma performance capaz de rebentar com o Tumblr com o seu rancor em tons de screwball clássico), no espectro político, religioso, cultural.

A ambição é mais que visível; é palpável: cronicar os últimos 20 anos do Ocidente – e quando falamos em Ocidente, falamos mesmo concretamente nos Estados Unidos, embora o filme nos leve pelo meio até Estocolmo. “O meu filme anterior era um filme histórico passado na primeira parte do século XX. E alguns dos eventos que o definiram e levaram à assinatura do Tratado de Versalhes. E após acabar o filme, achei que seria interessante voltar a casa, para a América, fazer um filme na cidade onde vivo (Nova Iorque) e fazer um filme sobre o início do século XXI. E é um pouco ambicioso para duas horas, mas pensei em fazer o meu melhor.“, disse-nos. Columbine, 11 de setembro, a ascenção de novos movimentos populistas… Se mandássemos para uma cápsula do tempo momentos-chave dos últimos 20 anos, estes estariam obrigatoriamente lá – foi essa a sua framework

Ocupando um espectro de referências que vão desde o cinema de Lars Von Trier (com quem o cineasta colaborou em Melancholia) a reflexões ambiciosas anteriores sobre como operamos enquanto cultura, como o incontornável Koyaanisqatsi de Godfrey Reggio (olhe-se para a maneira como Corbet filma aqueles arranha-céus de Nova Iorque sob o som de Scott Walker, seguidos imediatamente de uma multidão em câmara lenta a passear, no qual se destaca a jovem Celeste, a sua irmã, e o seu gerente), Corbet atinge aqui pontos de provocação bastante fortes; pesem estas referências de peso, encontra-se à sua segunda obra já a estabelecer elos de ligação entre o que está a dizer enquanto realizador. 

Uma história que se repete 

Não é só a história do autor que se “repete” de um filme para o outro para mostrar que a nossa história civilizacional está condenada a repetir-se. Também internamente, Corbet arranja maneiras de nos dizer que os nossos sucessores podem mimicar-nos. Numa decisão de casting nada inocente, decide pôr a jovem Raffey Cassidy, que faz de Celeste na sua adolescência a bisar no papel de filha de Celeste. Cassidy consegue no entanto marcar a diferença da repetição. Nota-se aqui um rasgo otimista na personagem da filha. Aliás, é várias vezes dito por Corbet, como um mantra, que ele é uma pessoa otimista, pese o tom sádico da história que nos conta. Um sádico otimista, portanto.  

 

Não há separação entre política e celebridade 

Para o realizador não há uma cultura de celebridades separada da outra cultura. E vai até mais longe a afirmar: “Não há separação entre política e celebridade, de todo“.

Afinal de contas, convém sempre lembrar que estamos ainda num mundo que vive da cultura pop como indústria capitalista. E não é um facto recente. É normalmente uma cena muito corporativa. (…) Algo manufacturado: um grupo de executivos que decidem num estilo e num som para um artista em particular. E tem sido assim há muito tempo. Scott Walker, que fez a banda sonora, começou numa boys band nos anos 60, The Walker Brothers, e isso era claramente algo manufacturado, porque nenhum deles se chamava Walker e não eram irmãos um do outro. Mas ele é um grande exemplo do facto de existirem artistas puros que são parte de cenas corporativas. Quer dizer, todos os cineastas que eu conheço, eu incluído, não fazemos dinheiro de fazer filmes. Eu nunca me conseguiria suportar financeiramente com o salário que ganho de fazer este filme.“, rematou, implicando posteriormente existir a necessidade de ter que fazer algo fora do set para compensar.

Celebrities – they’re just like us/Celebridades – são tal e qual como nós” (tirando uns trocos)

Estamos afinal todos no mesmo barco. Para lá da imagem de superestrela, há um ser humano fragilizado, a querer escapar. Personalidades auto-destrutivas temos todos nós ou ao nosso lado, ou a habitar nosso corpo. “Não tenho grandes opiniões sobre celebridades a serem auto-destrutivas; acho que os seres humanos são auto-destrutivos. Claro, se estás mesmo cansado, 250 noites na estrada, que muitas destas pessoas fazem, sabes, eu estaria a injectar heroína nos meus pés. (…) A ideia era esta: se vivemos num momento do tempo em que os factos interessam muito menos do que interessavam, e quando algo que seria e devia ser chocante deixou de ser chocante, rouba uma vida de sentir algo sobre algo. Portanto pensei: o que acontece quando temos um melodrama à moda antiga, com os clichés do melodrama, mas dentro de um momento no tempo em que não existe tal coisa como drama, porque não há riscos, porque tudo já foi jogado pela janela. Portanto, a ideia era de que o filme se tornasse cada vez mais insignificante à medida que fosse passando, portanto no início há um grande sentido de humanidade e que se acaba por dissipar.”

O que as personagens sentem, nomeadamente esta celebridade, é assim refletido num sentimento coletivo do mundo. O atentado que referencia claramente Columbine no início fere-nos com a sua secura, mas faça-se contraponto com o segundo atentado do filme, que marca precisamente o início do segundo ato (“Regénesis”). O momento-chave em que há uma despersonalização da protagonista e o afastamento face à sua irmã protectora? O 11 de setembro. 

Corbet não se inibe de virar o jogo quando ele próprio diz que o filme já acabou salvo um pequeno pedaço de filme: “filmámos o final como um concerto verdadeiro; já não há mise en scene ali“. O pedaço que refere é potencialmente o seu maior pecado e a sua última provocação ao espectador: o de invocar diretamente um contrato “faustiano”. A esse ponto do filme, tal informação parece completamente redundante, insignificante. Mas sim, temos claramente aqui um novo “brat” a seguir com toda a atenção que merece. 

Vox Lux estreia em Portugal a 10 de janeiro de 2018.