Sexta-feira, 29 Março

«Madame de …»: somos filhos da hipocrisia ou do destino?

Max Ophüls comanda um filme sobre a hipocrisia acabando por ser ele o próprio hipócrita no seio deste romantismo “burguês”, diríamos nós. É o destino que se torna na pesada sombra nesta demanda de joias, brincos que renunciam a sua característica de macguffin para se tornarem na catarse de todo o conflito.

Em Madame de … – porque nunca somos merecedores de conhecer realmente o seu nome, e tal não importa, porque o anonimato é um privilégio e ninguém é mais privilegiado que esta ‘senhorita’ de alta sociedade, o qual chamaremos apenas de Condessa Louise (Danielle Darrieux) – a futilidade é por si um aviso no cartão de apresentação “nada lhe aconteceria se não fosse aquelas joias”. Reveja-se o privilegio de uma vida garantida, emocionalmente garantida para ser mais concreto, uma dama capaz das suas aventuras amorosas – os seus pretendentes, muitos deles novos – simplesmente alheios às vontades do seu marido, Conde e General André de … (novamente o título / apelido não interessa), que por sua vez arrecada as suas tentações consumidas. Ele controla as relações de ambos, de forma a cair perfeitamente no gosto da sociedade vincada, por outras palavras, nada de escândalos aqui, a discrição é o maior dos privilégios. Porém, todo o controlo remete-nos ao iminente caos, mas este surge sob a aparência de destino.

O destino é hipócrita e essa hipocrisia atinge quem não os convém, os mergulhados pela mesma atitude. E nada mais hipócrita (ou será destinado?) que a primeira cena, as joias marcadas sobre um ponto-de-vista, esses ‘malditos’ brincos que serão os verdadeiros protagonistas, e a decisão demorada da nossa madame, a descartabilidade perante a sua futilidade, em vender um dos seus bens (Será as peles? Será o colar?). Completada a escolha, Louise atravessa a rua em direção aos ourives, mas antes há que fazer um desvio, a igreja para pedir à sua santa uma venda rápida das joias. A religião une-se a essa mesma hipocrisia. Quem mais seria?

Pedido cumprido, as joias são vendidas (o propósito desta venda, tal como o título, o espectador não é merecedor de o conhecer), mas o destino é nada mais, nada menos que um “brincalhão”, até porque estas acabam por ser secretamente revendidas ao Conde (Charles Boyer), que por sua vez oferece à sua ‘amante’ que entretanto o despedia em rumo ao Oriente, Constantinopla (“Uma mulher pode recusar uma joia que ainda não viu. Depois disso, é preciso heroísmo”). Lá, mais uma vez sob a ajuda “divina”, as peças acabam por cair nas mãos do Barão Fabrizio Donati (Vittorio di Sica, sim, o realizador italiano que tanto “pedinchou” um papel num filme de Ophüls) que parte para Paris como diplomata. A anedota do destino não termina aqui, o nosso Barão cruza acidentalmente com a nossa Madame e daí floresce a paixão. Poderia ser mais um pretendente, mas Louise nunca sentira tamanho carinho por alguém vivo, mesmo em perfeita negação (“Je ne t’aime pas, Je ne t’aime pas …”) e as joias, anteriormente dispensáveis para a mesma, convertem-se no maior símbolo dessa união. Pois é … esquecemos de mencionar, que as ditas cujas voltaram às mãos da sua primeira proprietária em forma de declaração de amor por parte do Barão.

Max Ophüls preenche a tela e estas tentadoras ligações com uma sufocante caracterização do quotidiano “burguês / aristocrata”, o guarda-roupa pomposo e as cuincarias / joias ostentadas sob o prazer da mostra, Madame de … é sobretudo um filme que respira por uma pequena frincha de ar, completamente objetivo, negligenciando todo o redor em prol da ajustada mira no triangulo amoroso. Não confundamos as atitudes, por mais burguês seja o conto da mulher e das suas preciosidades, este não é um filme burguês, antes disso, veste a pele para se induzir num ciclo de moralidades. Essa, que reveste no liberalismo das relações terciárias entre a Madame e o seu Monsieur, o foco absorvido a servir de exemplo modelar à mais pura das ingenuidades (podemos considerar isso a outra face da hipocrisia), o realce do amor como a evasão às nossas futilidades.

A burguesia é assim o grande tubo de ensaio para as pensativas reflexões de Max Ophüls sobre a natureza da nossa contenção, nunca um realizador debruçou-se tanto pela felicidade e o amor, desmistificando os seus papeis na grandes narrativas do Cinema. Enquanto que O Prazer (filmado um ano antes deste Madame de …), a “felicidade é triste” no encontro com a definição pura do romantismo (a tragédia que dilui nesse termo tão literário), a “infelicidade é uma invenção” neste Madame de …, em resposta do bovarismo que se conduz a paixões fantasiadas. Aliás, a burguesia, tema recorrente da sua obra, realçasse como uma fenomenologia, o espectador sai a perder perante este universo de berços de ouro, completamente negligenciado e desprezado. Mas as classes sociais são apenas frutos do tempo, e fora essas joias, peles e todos os costumes nada brandos, os burgueses desta vida, por mais que queiram, cedem aos prazeres mundanos e mortalizados. O amor, romance empacotado no seio cinematográfico, ou a definição quase shakespeariana, não é, nada menos que a fragilidade destes seres desamparados.

Max Ophüls dirige Vittorio di Sica e Danielle Darrieux em Madame de …

Porém, Madame de …, a narrativa entrelaça com as vontades da sua protagonista, assim, como, na primeira sequência, a escolha entre as preciosidades descartabilidades, a câmara encarna na personagem antes desta se tornar numa independente aos olhos do espectador. Em certo jeito, existe uma madame anónima no interior de cada um, a felicidade inalcançável, a fé profunda nos símbolos da nossa sociedade (quer religião, quer o ‘concretizado’ romance). Será isto tudo somente hipocrisia?

Hipocrisia ou não, a verdade é que, incompreendido no seu tempo, considerado na sua contemporaneidade num mero esteta, Max Ophüls é possivelmente um dos profundos e (positivamente) hipócritas cineastas franceses da sua época.

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