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Já podemos ter assassinas vítimas do patriarcado

… ou como «Alias Grace» e «The Sinner» complicaram narrativas tradicionais de vitimização

2017 será inevitavelmente, mais até do que se fez no audiovisual (e foi um ano bastante bom, quer nas salas de cinema, quer na televisão), todos ficaremos com uma recordação comum: o ano em que inúmeros crimes de assédio sexual contra mulheres (e também homens) cometidos por algumas das figuras mais poderosas de Hollywood, viram finalmente a luz do dia. O ano em que Hollywood se libertou finalmente de tradições antigas, portanto. Uma jogada que pode sinalizar tanto esperança para um futuro menos tóxico, como um franzir da testa dos mais cépticos em relação ao potencial aproveitamento comercial destes crimes. Seja qual for a opinião, o que é certo é que nunca se falou tanto de violência sobretudo por homens para com mulheres. 

E é precisamente essa narrativa de violência e vitimização que se interliga com duas das propostas mais sonantes da Netflix para o último trimestre: Alias Grace e The Sinner, duas mini-séries, duas adaptações de romances que colocam uma mulher no banco dos réus em dois tempos distintos da história da Humanidade, e conseguem com sucesso revertar uma narrativa tradicional de vitimização para as humanizar, e as colocarem, numa concepção, ora proto-feminista (numa sociedade onde a mulher era ainda vista como gado, como a descrita pelo romance de Margaret The Handmaid’s Tale Atwood), ora pós-feminista (a atualidade), num patamar de igualdade perante o género que as oprimiu. 

De facto, esta viragem, quer num contexto temporal quer proto quer pós-feminista, à narrativa tradicional de vitimização teve já manifestações cinematográficas marcantes no último ano: basta lembrar a mulher violada de Elle , magistralmente interpretada por Isabelle Huppert, ou a mulher tratada precisamente como gado de Lady Macbeth – encarnada por uma não menos impressionante Florence Pugh, já este ano. Não há propriamente aqui um aspecto vanguardista até no próprio tratamento formal das séries: Alias Grace é claramente mais sobre o conteúdo que a forma, até porque o dispositivo de depoimento aqui empregue, e sob o qual fica bem preso, é dos mais antigos utilizados pelas artes narrativas; The Sinner é ligeiramente mais agitado, sentindo-se que a sua história consiga transitar com tempo de antena mais igual entre investigador e assassina. 

Em Alias Grace, o assassinato de uma governanta e do seu amante (e ex-amo) por uma empregada de ascendência irlandesa (Sarah Gadon) acaba por adquirir adequadamente toques de assombramento, de bruxaria – afinal de contas, antes das acusações de histerismo, ou da vontade de tratar psiquiatricamente mulheres desenquadradas da norma patriarcal, houve precisamente essas acusações de práticas de artes do oculto como justificação para atirar um sem número de mulheres para a fogueira. A mini-série consegue aqui reverter o resultado expectável ao introduzir ambiguidade no depoimento final – finalmente para um público – alegadamente sob hipnose, ao mesmo tempo que frisa que, em tempos em que o masculino inevitavelmente terá maior poder, possa e deva existir sempre lugar para uma verdadeira solidariedade feminina (semelhante, com todas as suas diferenças, aos “manos”), nomeadamente entre vítimas e assassinas – dado que a linha entre uma e outra é, como a série bem descreve, muito ténue por vezes. 

Já em The Sinner, a reversão de uma narrativa tradicional de vitimização dá-se recorrendo a outros métodos. Aqui, há de facto menos espaço para ambiguidades: Cora Tenetti (num papel finalmente feito à medida da constantemente subusada Jessica Biel, justamente nomeada para os prémios de televisão de fim do ano) cometeu mesmo o crime de matar um aparente estranho com uma faca de descascar maçãs, numa certa bela tarde de praia. A noção de solidariedade feminina é menos gritante, fora o historial da personagem principal com a sua irmã, que adquire foco total no penúltimo episódio, todo ele em flashback (talvez o capítulo mais marcante de todos). Há mais aqui até um companheirismo “intergénero” entre Cora e o investigador que insiste em acreditar nela, por ser precisamente um espelho dela, como se assume no final, para além da questão de género, que obviamente tem também aqui um grande lugar.

A hipnose volta a ser usada nesta produção para revelar o que esta mulher não sabe ainda – neste caso, com resultados práticos e indubitáveis para o espectador. Poderíamos por isso pensar que estamos perante uma versão menor da história de Atwood, mas repare-se por exemplo, como no final desta mini-série, a linha entre vítimas e assassinos é igualmente esbatida, perante uma humanidade presa nos locais errados, ou então finalmente livre de outros locais ainda mais errados… e aqui, temos então a religião como casa histórica do patriarcado. Como as mulheres (vadias) estão precisamente a pedir para serem assediadas, violadas, e ultimamente condenadas pelos crimes que os homens acabaram por meter no caminho, restando aos pais “puros”, convictos que as suas filhas não desapareceram, mas simplesmente quiseram ver-se livres deles, a tristeza da sua tradição secular morrer com eles. E há também sempre presente o poder masculino sobre a sexualidade feminina, logo nos minutos iniciais, em que o marido de Cora a “força” amigavelmente a ter sexo com ele (foto acima). São traços como estes que fazem destas duas das obras mais marcantes do “ano dos assédios”. 

André Gonçalves