Terça-feira, 16 Abril

«Le Samouraï»: O segredo está na gabardine

Os quinze minutos iniciais de “Le samouraï” (“O Ofício de Matar“) permitem identificar alguns traços fundamentais do filme: um protagonista lacónico, fumador e solitário; um aproveitamento exímio dos cenários interiores e exteriores; uma atmosfera de malaise e a certeza de que o crime pontua todos os poros desta longa-metragem. A influência dos filmes noir é notória, com esta cidade de Paris que nos é apresentada a aparecer como um espaço marcado pela insegurança, personagens moralmente ambíguos e um número considerável de crimes. Dos filmes noir temos ainda a noite como testemunha de diversos episódios relevantes, a presença do clube noturno, representantes das autoridades que cometem atos pouco recomendáveis, as traições, a relação intrincada entre o protagonista e as mulheres, o fumo a marcar os cenários e a ritmar os sentimentos, entre outros exemplos.

No início do filme encontramos Jef (Alain Delon), o protagonista, a fumar um cigarro de forma vagarosa e silenciosa, enquanto se encontra deitado. O fumo contamina o apartamento e reforça quer o mistério que rodeia o protagonista, quer a efemeridade da vida deste samurai fora de época. As tonalidades cinzentas e desprovidas de vida estão bem presentes, bem como as paredes pontuadas pela humidade, com a paleta de cores, associada à simplicidade com que a habitação se encontra decorada, a permitir realçar que Jef é um indivíduo simples, frio, solitário, lacónico e calculista. Ficamos desde logo com uma demonstração do cuidado colocado no design de produção, com o apartamento a exacerbar eficazmente diversos traços da personalidade deste personagem. Outro dos cenários interiores em destaque é um clube noturno dotado de um ambiente inebriante, onde ficamos perante uma demonstração da frieza de Jef, nomeadamente, quando assassina o dono deste espaço após preparar minuciosamente uma série de álibis.

Vários funcionários conseguiram discernir que o homicida é um indivíduo alto, que utiliza gabardina e chapéu, embora não tenham certezas absolutas. Quem conseguiu observar o rosto de Jef é Valérie (Cathy Rosier), a pianista. No entanto, esta prefere omitir a verdade das autoridades, algo que surpreende o protagonista. Se o fumo aumenta a sensação de incerteza, já o olhar de Jef exprime uma confiança inabalável, com Alain Delon a imprimir uma postura contida, quase inexpressiva e lacónica a este assassino a soldo. O ator expõe o seu carisma e talento ao mesmo tempo que cria um personagem que controla os sentimentos ao máximo e tenta não criar ligações fortes com aqueles que o rodeiam. Uma das poucas pessoas com quem ele forma laços é Jane (Nathalie Delon), uma acompanhante que mantém um caso com o protagonista e mente para protegê-lo. Diga-se que Valérie também forma uma relação peculiar com o “samurai”, sobretudo a partir do momento em que não o denuncia.

Valérie e Jane protegem Jef e acabam por ficar na mira do comissário que lidera a investigação, com François Périer a imprimir um estilo duro e nem sempre recomendável a este personagem. Note-se quando inicia um jogo psicológico com Jane, tendo em vista a que esta delate o protagonista. A capacidade de manter o silêncio e não fazer denúncias às autoridades ou ao inimigo são temáticas transversais a diversos filmes de Melville, tais como “L’armée des ombres“, “Le Deuxième Souffle” e “Le cercle rouge“. Jane e Valérie fazem parte do leque de “personagens Melville” que são regidos por valores muito próprios, com o silêncio a surgir como uma parte essencial das suas pessoas e do filme. A começar pela personalidade do protagonista, mas também pela forma sublime como Melville arquiteta alguns momentos inquietantes que contam com poucas ou nenhumas palavras trocadas. Observe-se com atenção o trecho em que dois polícias instalam de forma discreta e silenciosa uma escuta na casa de Jef, ou a troca de olhares entre o assassino e Valérie numa fase decisiva do enredo.

Nada nem ninguém parece estar seguro, embora o protagonista esteja sempre em maior perigo, pese a segurança latente que apresenta. Este é perseguido quer pelas autoridades, quer pelos seus superiores, enquanto protagoniza uma espécie de jogo entre o gato e o rato com estes elementos, com Melville a aproveitar para polvilhar a obra de condimentos de uma miríade de géneros. “Le samouraï” envolve-se com acerto pelos meandros do filme de investigação policial, de gangsters, noir e de vingança, ao mesmo tempo que coloca o espetador diante de alguns momentos memoráveis, seja uma perseguição e fuga pelo metro de Paris, um assassinato num clube noturno, ou um encontro entre o protagonista e a pianista. A relação entre Jef e as mulheres é complicada, ou não estivéssemos perante um universo narrativo pouco propício a romances e muito dado ao crime, onde a noite é companheira de atos menos lícitos e o fumo dos cigarros esvoaça com a mesma facilidade que uma vida.

Jef vive para o seu ofício, tendo no ato de colocar as luvas brancas um ritual de “guerra” e na sua gabardina uma segunda pele. Fala pouco e tenta não dar nas vistas, embora a sua presença pareça rodeada de uma aura que o distingue. Melville concede atenção a este personagem de personalidade ambígua, tal como aos olhares que este troca com os seus interlocutores, enquanto aproveita de forma exímia os espaços que o rodeiam, sejam os cenários interiores que “dialogam” com os acontecimentos, ou esta Paris desencantada. Com um protagonista lacónico e carismático, regido por valores muito próprios, uma interpretação notável de Delon, uma utilização eficaz da banda sonora, “Le Samouraï” inebria-nos para o interior do seu universo narrativo negro, pontuado por uma atmosfera pessimista tipicamente noir, que desperta um certo fascínio e toda a nossa atenção.

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