Terça-feira, 19 Março

Da mise-en-scène de «Still Alice»

Somos a memória que temos. – José Saramago

Vi recentemente 3 filmes com Julianne Moore na televisão, sem qualquer relação entre si, a não ser a presença da atriz americana. Foram eles o mui defendido Um Homem Singular de Tom Ford, o filme de ação Assassinos com Stallone e, finalmente, aquele que lhe veio a dar o cobiçado Óscar de interpretação, O Meu Nome é Alice de Richard Glatzer e Wash Westmoreland. Sem querer denegrir o primeiro ou alimentar discussões sobre o segundo, foi, de facto, o último destes 3, aquele me pareceu ser o mais interessante, longe do rótulo simplista de “filme de Óscar” que esperaria.

Esta obra, cuja intriga, recordo, gira em torno de uma professora de linguística que é diagnosticada com Alzheimer, foi aclamada pelas razões expetáveis (não é preciso procurar muito para encontrar os vastos e merecidos elogios à atriz), mas criticada também pelas suas propensões melodramáticas. Sem querer parecer presunçoso, creio, no entanto, que nenhum dos lados abordou suficientemente aquilo que me parece que faz de O Meu Nome é Alice um filme íntimo na história que conta. Que é a mise-en-scène do seu duo de cineastas, que se viu ofuscada em muitos dos textos pela qualidade de representação de Moore e pelo perigosíssimo estigma de “filme de tema”. Uma mise-en-scène que me parece ser portadora de algumas ideias de valor cinematográfico. Pretendo, então, com este breve artigo, salientar 3 delas em algumas cenas-chave do filme.

Da profundidade de campo

O primeiro aspeto que acho destacável é o uso inteligente (no corte) da profundidade de campo em momentos que espelham a deterioração neurológica da sua protagonista. O melhor exemplo é a cena em que Alice, de fato-de-treino colocado, corre pela cidade. A dada altura, no meio do campus universitário onde leciona, imobiliza-se e tenta reconhecer o local em que está, olhando em volta. A câmara acompanha este movimento num travelling que a circula, tomando-a como ponto fixo de referência, mas onde nem o campus nem os transeuntes que o atravessam estão devidamente focados. A ilusão criada é a de um espaço confinado rodeado por uma neblina obsidente, uma jaula de um vidro bacento imaginário que leva a protagonista a um processo de violenta ostracização e que provoca no espetador um desconforto sitiante, a primeira das impressões labirínticas que o restante filme vai construindo de maneiras mais ou menos semelhantes.

A pouca profundidade de campo no travelling circular que toma Alice como ponto fixo de referência.

É o caso de uma das cenas de consulta onde temos um grande plano do rosto de Alice desfocado. À medida que a ouvimos identificar, de forma custosa, os objetos e animais que lhe são mostrados por uma série de cartões pelo neurologista, o seu rosto fica lentamente visível, parando o processo de focagem no exato momento em que Alice hesita em identificar o próximo animal. Enquanto ela esforça a memória na identificação do que lhe é mostrado, o espetador esforça o olhar para combater esta ligeira hostilidade visual de Glatzer- Westmoreland. Se no cinema aquilo que o espetador pode tomar como genuíno é aquilo que vê, a maneira que os cineastas arranjam para representar o esquecimento da sua protagonista é por uma miopia deliberada na imagem, imposta pelo jogo com a profundidade de campo.

A focagem no consultório. A miopia como metáfora do esquecimento.

Da abolição do contracampo

Quando entrevistámos João Salaviza [ler entrevista] a propósito do seu Montanha perguntámos-lhe sobre as similaridades de uma cena do seu filme com a de Os 400 Golpes de Truffaut. Era ela uma em que o rapaz interpretado por David Mourato era entrevistado por uma professora, com a particularidade de que a inteireza dessa cena era mostrada através de um plano médio curto. Nunca havia o contracampo para a figura autoritária, mesmo quando esta falava, sendo a voz off-screen o único registo da sua presença. Tal era também o caso do Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud) do filme de Truffaut. A justificação que nos apresentou foi a de que o recurso a este dispositivo do campo sem contracampo permitia “deixar espaço para que o olhar refletisse o mundo”. Alice não é uma adolescente, mas este processo é justamente abordado na sua primeira consulta, um grande plano de 3 minutos, à medida que é questionada a respeito dos seus hábitos quotidianos pelo neurologista.

A abolição do contracampo. Em cima: Os 400 Golpes (1959), François Truffaut. Em baixo: O Meu Nome é Alice (2014), Richard Glatzer e Wash Westmoreland

Falei há pouco da miopia e recorro a este excerto de Salaviza a propósito do “olhar”. Nesta cena em questão, os olhos de Moore transmitem confiança e serenidade, apesar das suspeitas que tem quanto ao seu estado de saúde. Nem ela, nem os cineastas voltarão a comportar-se da mesma maneira aquando a saída do consultório. E quando Alice retornar a esse espaço surge, por fim, o contracampo que havia sido evitado, naquela que é a cena em que descobre que tem Alzheimer, ao mesmo tempo que o seu olhar se entristece.

Do blocking dos atores

Numa das cenas mais dolorosas do filme, Alice procura a casa-de-banho numa casa perto da praia. Em esforço, tateia as paredes, abre e fecha portas e hesita entre as várias divisões da habitação. Não a encontra. Nem o espetador. De facto, aquilo que poderia parecer um desleixe na preocupação do duo de cineastas em dar a entender a geografia da casa mais cedo é, na realidade, uma maneira de mostrá-la pelo ponto de vista olvidável da sua heroína. Não sabemos mais do que ela e, como tal, sentimo-nos presos naquele espaço, olhando-o com a já referida impressão labiríntica, onde a câmara nunca se adianta à sua personagem. Para a câmara se mover, Alice tem de entrar primeiro em cada espaço e ultrapassá-la, servindo-lhe de guia. O blocking no movimento de Moore não só pretende levar Alice a descobrir o espaço, como também a fazê-lo pelo espetador. Não o consegue. E, como tal, ambos ficam perdidos numa memória fragmentada. Tão fragmentada como a imagem do rosto de Moore quando se vê ao espelho perto do final. 

O movimento de Alice, onde a câmara não se adianta à personagem, deixando-a descobrir o espaço.

 O espelho como metáfora da memória fragmentada de Alice.

Duarte Mata

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