Terça-feira, 19 Março

Guardemos para hoje o que antes outros já souberam

Fim de Semana no Ascensor (Louis Malle, 1958)

La Notte (Antonioni, 1961)

  1. Quis ser muitas, mas nunca quis ser a Jeanne Moreau. Via-a pela primeira vez nos seus traços gastos e ela carregava até mim o meu Eu do futuro – e não há quem agradeça um espelho antecipado. Pôs-me a pensar na construção ancestral do feminino, esse sistema de imposições e de expectativas em que eu, sem decidir, participava a partir da hora em que nasci mulher. Nesse tempo, eu estava no fim da adolescência e no primeiro ano da universidade. Aquele filme fez-me crescer e eu senti as dores: era o La Notte, de Antonioni. Jeanne Moreau andava talvez pelos quarentas ou nem isso, e Mónica Vitti assumia 24, em personagem. Numa festa que durou uma noite, Mastroianni esvaziava-se pelo tédio. Distraía-se com o álcool, com os joguetes burgueses e com os vultos das que passavam. Tombado de sede pela vida, Giovanni permite-se a enlouquecer e dá-se ao desconhecido. Cai, forte e feio, de amores por uma apaixonante jovem – a nunca tão bela Vitti. Detestei tudo o que passou a seguir. A sua mulher Lydia, silenciosa, consentia o que parecia entender como natural. Ele prosseguia, por um ‘princípio do prazer’, nas quadrículas da corte. E a jovem Valentina, continuando a deambular com todos os requintes no sítio, debitava condescendências pela preterida e demorava mais do que exigiria o bom-costume até sair de cena. As palavras eram ocas, a rebentar em promessas de impossível. Tornei-me cínica enquanto via esse filme de trás para diante. Tentei decifrar a amoralidade geral e deduzi que tudo ali era desdém, do mais profundo, pelo nosso humano vício de emparelhar indivíduos.
  1. Um dia, li uma quote de Jeanne Moreau: “A idade não te protege do amor. Mas o amor, até certo ponto, protege-te da idade.’’. Percebi que ela me estava a explicar o que eu não tivera maturidade para entender. O vaivém desse Tourbillon de la vie sobre o qual cantou em Jules et Jim só nos diz que, ao lado do tempo que foge, as vias para o amor devem desimpedir-se porque só este acede à juventude verdadeira:‘‘Quand on s´est connus, Quand on s´est reconnus, Pourquoi se perdre de vue, Se reperdre de vue?, Quand on s´est retrouvés, Quand on s´est réchauffés, Pourquoi se séparer?, Alors tous deux on est repartis, Dans le tourbillon de la vie, On à continué à tourner, Tous les deux enlacés, Tous les deux enlacés.’’ Bem soubeste, Antonioni – o amor oblitera a idade pela chance de ser jovem até ao fim.
  1. E se o cinema nos ensinou que o amor é o direito último, que é uma lei em si, que é a escolha acima das escolhas, chegamos à liberdade desses três, Jules et Jim et Catherine, já longe de preconceitos. Os anos sessenta pulsam em cabeças e em corpos desempoeirados e Truffaut lembra-nos, como Lubitsch nos lembrou trinta anos antes, que o amor é um ”design for living”. Para cada coração, julgamento nenhum. Hoje estamos no futuro. Já não há Truffaut, nem Antonioni nem Moreau, mas ficaram-nos os filmes. Guardemos para hoje o que antes outros já souberam.

 

*Sabrina D. Marques é artista visual e investigadora e trabalha em produção, escrita e realização de cinema. Colaboradora no site À Pala de Walsh. Licenciada em Ciências da Comunicação (FCSH). Especializada em Cinema (ESTC). Doutoranda em História da Arte (FCSH). Cofundadora do núcleo de programação alternativa WHITENOISE. Fundadora do colectivo GERMINAL, dedicado à exibição de artes experimentais.

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