Quinta-feira, 28 Março

Ode ao Zombie (uma carta a George)

Foste, George, quem melhor desenterrou a figura do zombie e nos soube mostrar toda a distância que não existe entre esta nossa vida-morredoura e aquela morte-vivente (para ir buscar as expressões de Hannah Arendt). Resta-nos dissecar esse corpo que fizeste crescer como um subversivo manifesto político, e saber ler nas entrelinhas de uma obra como uma crítica em contínuo que, disseminada no mercado mainstream do género de terror, soube problematizar cada hora. Chamam-te o Pai dos Zombies mas também é verdade que és o seu mais comprometido autopsiador: desenhaste-nos o espelho com o cinema e, através de filmes de zombies (e não só), soubeste fazer-nos ver como a zombielândia é aqui e agora – e que eles, os zombies, afinal somos nós.

Night of the Living Dead (George A. Romero, 1968)

 -És ignorante.

 -Eles vão vir atrás de ti.

-És palerma.

-Eles vão vir atrás de ti.

(Night of the Living Dead (George A. Romero, 1968))

  

O QUE É O ZOMBIE? 

HUMAN BRAIN vs ZOMBIE BRAIN – na série The Walking Dead (2010) 

O zombie é o mensageiro do apocalipse. Figura de interstício, está em terreno entre a vida e a morte. É um cadáver animado por uma indefinível chama diabólica, que o conduz pelas suas necessidades de subsistência: está morto mas existe e precisa de comer – a carne humana. Em suma, mantém-se segundo leis que o resto da natureza não segue. O zombie é a degeneração canibal da criação, que suga a vida dos vivos e prossegue segundo princípios destrutivos em direcção ao caos e à demência – num atentado contra a vida e a organização da sociedade. É carne em ponto de decomposição, mas na sua forma humana, o que chamar a estes monstros semelhantes, que foram humanos e deixaram de o ser? The Walkers, The Dead, The Walking Dead, ou The Unliving são outros nomes para os zombies que, contagiados por um vírus de origem indefinida, se multiplicam e não morrem naturalmente. A sobrevivência da espécie humana implica a defesa activa e a eliminação dos zombies. Nesta luta, podemos realmente matar os mortos, ou..? 

O ZOMBIE ANCESTRAL

“Visto hoje, A Noite dos Mortos Vivos apresenta a simplicidade e a limpidez dos arquétipos. A temática “zombie” não era, claro, virgem no cinema americano, que já a tinha abordado em filmes célebres (I Walked With a Zombie, do genial Tourneur, ou o White Zombie de Victor Halperin) e em directa referência às mitologias caribenhas que a originaram. Mas A Noite dos Mortos Vivos reinventou-a, partindo de uma folha em branco e de uma situação elementar: os mortos andam por aí, à procura de carne humana fresca (e viva) com que se alimentarem. Foi tudo, ou quase tudo, o que bastou para “fazer” um subgénero dentro do cinema de terror. ” Luis Miguel Oliveira

“The Zombies”​​ de Hector Hyppolite, que está pendurado no Museu de Haitian Art of St. Peter College in Port-au-Prince

White Zombie (Victor Halperin, 1932)

I Walked with a Zombie (Jacques Torneur, 1943)

‘‘Eles moviam-se como brutos, como autómatos. Os olhos eram o pior. Eram de verdade os olhos de um homem morto, não cego, mas numa observação sem foco, sem visão.’’ William Seabrook, foi a Haiti em 1927 e escreveu The Magic Island

Quem nos dera poder dizer: os mortos não somos nós. Só que não podemos. É por isso que das longínquas geografias nos chegam variações dessa repugnante figura que é o zombie, que tão crua e veridicamente, explicita o embate humano com a finitude. O zombie é o ‘‘já-aqui-está’’ da morte – e é a sua aparência humana o que o torna particularmente assustador. Diz-se das histórias de zombies que são tão velhas quanto a raça humana, e que até na antiga Mesopotâmia as havia, como demonstram certas linhas de Ishtar no antigo Épico de Gilgamesh: ‘‘Father give me the Bull of Heaven, / So he can kill Gilgamesh in his dwelling. / If you do not give me the Bull of Heaven, / I will knock down the Gates of the Netherworld, / I will smash the doorposts, and leave the doors flat down, / and will let the dead go up to eat the living! / And the dead will outnumber the living!’’

“No dia seguinte ninguém morreu” , assim começam As Intermitências da Morte, romance em que José Saramago idealiza um país onde as pessoas deixaram de morrer – o mesmo leit-motif das recentes séries Ressurrection ou Torchwood, em que os mortos regressam à vida. A palavra zombie vem da religião voodoo do Haiti (com origens na África central), e acredita-se que o zombie é um escravo destituído de vontade própria, cuja mente é controlada exteriormente – ou, então, um morto reanimado e controlado por um bokor, um feiticeiro voodoo. Crê-se que estas histórias remontem à chegada dos primeiros escravos africanos ao Haiti pelos colonos franceses e que estes zombies sejam uma manifestação das ansiedades trazidas pela escravatura – que equivale à morte do livre-arbítrio, ao humano reduzido a corpo sem cabeça. Como resumiu James Twitchell, “o zombie é o derradeiro acéfalo, é um vampiro com uma lobotomia’’. E a maneira eficaz de o matar bem morto é esfanicar-lhe a cabeça.

Land of the Dead (George A. Romero, 2005)

Não há civilização humana que não ponha em prática o seu temor à morte. Se a celebração funerária é símbolo de sociedade, garantia solene de que todos os que antes viveram merecem o mais supremo respeito, todos os rituais de preparação dos corpos para a morte procuram, também, assinalar a vinco a separação entre vivos e mortos. Os caixões querem-se selados, as tumbas querem-se pesadamente imóveis e os defuntos querem-se bem enterrados. É um problema muito prático – a putrefação do cadáver é nociva e doentia e, porque contamina o que vive, este deve ser descartado o mais rapidamente possível. Como apontou  Daniel W. Drezner, ‘‘as histórias de zombies podem acabar de duas formas possíveis: com a eliminação/subjugação de todos os zombies, ou com a irradicação da Humanidade da face da Terra.’’ 

O inglês William of Newburgh (1136?–1198?) deixou, por escrito, testemunhos sobre ‘‘cadáveres saídos das tumbas’’, propondo atemorizantes figurações para o revenant (o retornado), um espírito, fantasma ou cadáver que volta dos mortos para assombrar os vivos. Na mitologia chinesa, Jiang-Shi é o nome para o fantasma que regressa dos mortos por não ter sido devidamente enterrado. Draugr era o nome escandinavo do viking mal-morto que passeava o seu apetite por carne humana – figura de força sobre-humana que só seria vencida se voltasse a ser enterrada. Retornar como Ghoul era, na mitologia árabe, um castigo para a má conduta, normalmente feminina – a mal-morta era o diabo feito mulher, que cativava, com o errante canto das sirenes, a presa que ia ser devorada. Tu, Romero, baptizarias precisamente de Ghouls os teus primeiros zombies, em Night of the Living Dead (1968).

 APOCALIPSE NO CÚMULO DO PROGRESSO TÉCNICO

Crazies (George A. Romero, 1973)

A distopia alimenta a narrativa de ficção científica, sempre soubeste. A pulverização do terror, do gore, do horror, da série B e dos slashers, no cinema e na televisão, traduziu as consequências nefastas da guerra que construía, na ansiedade geral, um permanente estado de alerta. Vimos, siderados, o potencial destrutivo da bomba atómica no pico da segunda guerra mundial. Vimos o efeito deformador do agente laranja sobre os corpos no Vietname. Vimos os russos a chegarem primeiro à órbita terrestre e perguntámo-nos se aquele seu satélite seria a arma aérea que dizimaria o ocidente. Sentimos na pele a tensão atómica da guerra fria e entrámos nos anos sessenta fartos de todos os governos que decidem por nós. Só sabemos que não sabemos – por isso, não confiamos.

Hoje mais do que nunca, lemos com actualidade este rol de populares narrativas de fim-do-mundo. A ideia do apocalipse alimenta-se da desconfiança geral no progresso técnico. Talvez já tenhamos ido longe demais, talvez andemos a perturbar forças maiores, talvez haja um desastre à beira de acontecer. Já em 1818, Mary Shelley escrevia sobre o monstro de Dr. Frankenstein, a moralizadora história do Moderno Prometeus que, como no mito clássico, reservava ao Homem o supremo castigo por se armar em deus. No folclore judaico, a famosa figura do Golem, gigante animado feito de material inanimado, torna-se cada vez mais violenta matando até o seu próprio criador. O mundo está mudado, demasiado mudado. E à hora em que tudo pode acontecer, há cada vez mais séries, videojogos e filmes infestados por zombies.

Frankenstein (James Whale, 1932)

 

Der Golem (Paul Wegener e Henrik Galeen, 1915) 

Toda a gente morre em Night of the Living Dead (1968), o teu primeiro filme, assombroso sucesso de bilheteiras que, então, ia mais longe do que nunca em explicitude gore. Inspirado pelo livro de Richard Matheson, este primeiro título de uma saga de Deads (que se estenderia até 2009), sai directamente do agitado ano de 68: transporta o fervor da luta pelos direitos civis e constrói uma posição contra o racismo (o final alude ao homicídio de Martin Luther King, um ano antes). Sobre ele, disseste: “I was telling a story and I had a couple of radical ideas and, you know, it’s more of a political statement than it is a film”

 

OS ZOMBIES SOMOS NÓS

Fonte: THEORIES OF INTERNATIONAL POLITICS AND ZOMBIES, de Daniel W. Drezner  (Princeton University Press, 2011)

Ao longo destas estórias, complexificarás continuamente o zombie como uma espécie em evolução, simultaneamente alicerçando o arquétipo do ‘‘zombie-à-Romero’’, que relaciona a missão insondável do exército-zombie com objectivos políticos actuais e concretos. Como Ricardo Vieira Lisboa tão bem apontou, a tua predilecção pelo zombie traduziu-se num redesenhar evolutivo da sua figura, que foste espessando:‘‘…como o próprio Romero admitiu, os zombies sempre lhe desenvolveram alguma simpatia e o facto é que, com excepção do primeiro Night, os mortos-vivos são figuras dramáticas. Com Dawn ganham memória e portanto a compreensão de que estão de facto mortos; em Day ganham a aprendizagem e a compaixão (e também a raiva e vingança), tornando-se por isso parte de um contexto social que os repele; e em Land of the Dead (Terra dos Mortos, 2005) ganham a comunicação e a capacidade de transmitir conhecimento e com isso (e com a recusa dos instintos básicos, como o medo do afogamento) arrebatam o paraíso dos humanos assassinos.’ Adrian Martin lê nesta remodelação uma ‘‘mudança de significado ao sabor dos tempos: os zombies como protestantes contra a guerra do Vietnam; como consumidores absortos; como uma vasta subclasse de Americanos passivos.’’ Na sua leitura, evoca Boris Frankel, autor de Zombies, Lilliputians and Sadists: The Power of the Living Dead and the Future of Australia (Fremantle Arts Centre Press, 2004), que associa a figura do zombie à despersonificação pela sociedade consumo, ao trabalho autómato e à paralisia da acção face à ilusão desinformadora do sistema. 

‘‘Com os “mortos” transformados no periódico “bilhete-postal” que Romero enviava dando conta das suas observações sobre o “estado do mundo” (e que em 2005 originara Terra dos Mortos, o mais carpenteriano dos Romeros), Diário dos Mortos actualizava a saga para o tempo da Internet e do YouTube. O filme construía-se assim, num feixe de imagens colhidas nas mais diversas fontes, como uma recolha de imagens de telemóvel ou de câmaras de segurança, e os zombies já importavam menos do que o retrato de um mundo assim “atomizado” pela enxurrada de imagens, onde cada um transporta, no seu telemóvel, a sua “verdade” (ou as suas “fake news”), e todo e qualquer sentido “comunitário” está corroído à partida.’’ LUIS MIGUEL OLIVEIRA

Dawn of the Dead (George A. Romero, 1978) 

-Porque é que vieram para aqui?

 -É parte do seu instinto, memória, daquilo que costumavam fazer.

 Dawn of the Dead (George A. Romero, 1978)

 ‘‘Quando não houver mais espaço no Inferno, os mortos vão povoar o shopping.’’. Ao teu radicalismo anti-capitalista, juntaram-se as vozes de John Carpenter ou Tobe Hooper para abrir realmente os olhos em plena civilização da imagem. A missão? Colocar o monstruoso ao serviço da desmontagem de uma realidade que foi substituída pelas suas representações. O vírus letal em permanente incubação nos corpos zombies, afinal, é o capitalismo. Dirigido à passividade amorfa daquela roda de donas-de-casa, ouvimos em Fahrenheit 451 (distopia sci-fi de Ray Bradbury de 1953, adaptada por Truffaut em 1966): ‘‘Vocês não passam de zombies, todas vocês! Vocês não estão a viver, estão a matar o tempo!’’

Fahrenheit 451 (François Truffaut, 1966)

Se o consumo massivo permite a manipulação massiva, o olhar hipnotizado pela mensagem dominante criará um exército de zombies a comportar-se em conformidade, como descrevia George Orwell em 1984. Ouve-se em Survival of the Dead (George A. Romero, 2009): “They’re us. We’re them and they’re us”. No dia em que, em Land of the Dead (George A. Romero, 2005), os zombies ganharam inteligência, não foi, afinal, todos os excluídos o que vingaram? Guiados pela revolta, combatem a ganância materialista que corrompe a moral humana.  Aqui, o zombie é o Outro: o excluído, o marginal, o que a sociedade estigmatiza, diaboliza, esquece ou ignora. Como em Freaks (de Tod Browning, 1932), os oprimidos organizam-se e combatem juntos. Com a expropriação chega o nivelamento: este apocalipse zombie é a revolução que faz rebentar as classes, que ocupa as torres de marfim do paraíso privado de Riddle’s Green e que, assim, redistribui a posse e o poder e põe todos a par da realidade como ela é. Como notou Adrian Martin, ‘‘a ação em Land of the Dead é, como vimos, sempre sobre uma coisa: poder político (ou a sua ausência: o desempoderamento).’’  

 

Land of the Dead (George A. Romero, 2005)

A CIVILIZAÇÃO DO SOBREVIVENCIALISMO

‘‘Durante um período breve, os mortos-vivos serviam como um útil teste de Rorschach para as doenças sociais da América. Por várias vezes, representaram o capitalismo, a Guerra do Vietname, a tensão que rodeava o movimentos dos direitos-civis. Hoje os zombies estão quase sempre ligados ao fim do mundo, através do ‘apocalipse zombie’, uma pandemia global que transforma a maior parte da população humana em bestas raivosas por carne da sua própria espécie.’’ Mike Mariani 

Disseste, certo dia, que os teus filmes de zombies são mais de filmes-de-acção-e-aventura do que propriamente filmes-de-terror. E se hoje vivemos no Fim do Tempos, como muito vaticina Slavoj Zizek, em todos os canais vemos as narrativas da ficção que descrevem consequências do colapso real do capitalismo. Este espírito de apocalipse alimenta-se da morbidez insustentável de um sistema neo-liberal que, a todos os níveis, falha visivelmente. Quando a Terra está na iminência de acabar com um desastre climático, económico, biogenético, atómico, bélico, extraterrestre, zombie ou outro, o milénio abre-se ao sobrevivencialismo. 

O monstro alimenta-se da sua própria carne pútrida e a oferta mainstream, da televisão a Hollywood, multiplica-se entre narrativas de acção e de aventura sobre desastres mortais, fins-do-mundo, cataclismos e armagedãos, numa autêntica economia do apocalipse. Domamos a ansiedade em frente do ecrã. Aprendemos a sobreviver, em directo, com os concorrentes do reality-show Survivor (2000-2017). Perdemo-nos na selva em hit-shows como LOST (2004-2010). Reencontramos a moral perdida junto dos pós-humanos primatas da nova saga Planet of the Apes (2001-2017). 

‘‘O nosso corpo biológico é, em si, uma forma de hardware que precisa de uma reprogramação, como um novo software espiritual que possa libertar ou desbloquear o seu potencial.’’ Foi Zizek quem escreveu (em Living the End Times), o que poderia ter sido dito sobre os teus filmes de zombies: esses corpos em decomposição com uma remota forma humana e uma insaciável fome de miolos ‘‘- Brrrraaaaiiiinnnnsss!’’ são invólucros para um humano outro, um humano-por-ser, um-humano-do-futuro, um humano a ser habitado pela humanidade que lhe falta – o pensar.

(77 anos não bastam a quem de génio. És, via cinema, o vírus que queremos conservar, George A. Romero. E esperamos, num dia nevoeiro, ver-te voltar levantado da tumba.)

 

*Sabrina D. Marques é artista visual e investigadora e trabalha em produção, escrita e realização de cinema. Colaboradora no site À Pala de Walsh. Licenciada em Ciências da Comunicação (FCSH). Especializada em Cinema (ESTC). Doutoranda em História da Arte (FCSH). Cofundadora do núcleo de programação alternativa WHITENOISE. Fundadora do colectivo GERMINAL, dedicado à exibição de artes experimentais.

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