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«Altered States»: os estados alterados de Ken Russell

O enfant terrible inglês Ken Russell, o homem que chocou meio mundo com a sua brilhante heresia ambulante – The Devils (1971) – decidiu avançar para terras de Hollywood e encontrou na Warner Bros., o “perfeito pedaço de céu” para começar a sua jornada. A tarefa não era simples, aliás, consistia em adaptar o livro de Paddy Chayefsky, Altered States, uma prolongada trip ao mundo das drogas alucinogénicas, que vai desde os rituais xamânicos de uma tribo mexicana até à câmara de isolamento de uma Universidade de Harvard. O trabalho fictício de Chayefsky foi inspirado nas investigações de John C. Lilly, que utilizava tanques de privação sensorial e drogas psicadélicas para as suas pesquisas no foro da consciência humana.

A produção de Altered States foi marcada por uma constante disputa entre o escritor (também autor do argumento) e o realizador. O primeiro acusava o segundo de não seguir “à risca” o seu trabalho escrito, e Russell considerou Chayefsky demasiado intrometido na sua realização (tendo sido várias vezes banido do set). O resultado desta relação continuou tortuosa até à morte do escritor, que havia recusado o seu nome creditado no filme (tendo acabado apenas por surgir sob o pseudónimo de Sidney Aaron), para além de afirmar em público a não intenção de ver a obra. Tais escândalos encheram manchetes noticiosas, mais do que o filme propriamente dito que converteu-se num fracasso financeiro do estúdio.

Contendo os primeiros papeís de William Hurt e Drew Barrymore no cinema, Altered States pode muito bem ser um produto imaginado desde a primeira linha como a aposta de uma major, mas no interior desta viagem alucinada esconde-se uma obra tão particular ao estilo de Russell. O realizador confessou anos mais tardes que fora durante a rodagem deste filme que obtivera a mais marcante trip da sua vida. Se tal experiência influenciou o filme ou não é, até aos dias de hoje, inexplicável. Porém, é evidente os traços dementes e igualmente íntimos do cinema do realizador. A começar com a primeira sequência de delírio – uma sucessão teológica que arranca com a tão marca autoral de Russell (de crucifixos a cobras blasfémicas), esta é a crença habitada no coração do cineasta, uma fervorosa religiosidade em conformidade com um anárquico olhar crítico à própria fundação católica. Sim, este é um filme celebrizado na sua consciência cientifica, embora o seu arranque seja tudo menos enviusado nessa área, até porque a mente do protagonista, assim como a do realizador, encontra-se concentrada no elo divino, mais do que o elo evolutivo.

William Hurt desempenha o cientista (por outras palavras, cobaia), que se aventura numa perigosa experiência sobre a consciência humana e de que maneira esta nos aproxima e afasta dessas mesmas raízes divinas. Sujeitado a uma câmara isolada sob a dosagem de exóticos e alucinados estupefacientes, ele começa a delirar. Os devaneios mentais começam a materializar-se sem razão aparente, alimentando teorias de regressão evolutiva ou até mesmo avanços na espécie humana.

Altered States joga diversa vezes como uma catarse entre o darwinismo sofisticado com o criacionismo redentor, o filme tem essa tendência de auto-duvidar-se enquanto se apresenta como um romance do emocional com o mental. A obra tem sido descrita por muitos críticos da altura como “atrevida” (uma característica rara vinda de um grande estúdio), e uma dessas ousadias está nas primeiras utilizações do CGI, onde a personagem de William Hurt transforma-se em algo nada concreto sob o utensílio da rotóscopia.