Terça-feira, 19 Março

«Dead Ringers»: Somos Gémeos, Somos Mutantes!

Dead Ringers (Irmãos Inseparáveis, 1988) em todo o caso deve-se incluir numa lista de falsos-bromances, enquanto se discute um triângulo amoroso que nos leva à autodestruição de dois vértices do mesmo. Porém, ao contrário de qualquer intriga que se poderia suscitar nesta descrição, um efeito comum na transcrição do cinema noir e do cinema sobretudo masculino, existe um pormenor a ser discutido neste mesmo triângulo, dois dos seus lados são iguais, por outras palavras … idêntico. Gémeos idênticos.

Baseado num livro de Jack Geasland e Bari Wood sobre o suicídio dos irmãos Marcus, David Cronenberg encontra nesta história real a possibilidade de uma dissecação psicológica sobre a natureza dos gémeos. O tom encontrado foi de uma repulsa prolongada por diversos factores. Mais do que detalhes de enredo, esses elementos são ferramentas para esta cuidadosa cirurgia. Começamos com uma dupla de ginecologistas, gémeos fraternos (fisicamente idênticos), que repartem o mesmo gosto, assim como as mesmas experiências. Em derivação disso, partilham mulheres, sentimentos, a luxúria vibrante que pode despoletar nesses relacionamentos, fazendo-o através de um jogo. Um perfeito jogo de ilusões.

Eles são os “fabulosos” gémeos Mantle (ambos desempenhados por Jeremy Irons no meticuloso processo de individualidade), brilhantes mentes da sua área, verdadeiros manipuladores que cedem à sua própria armadilha. O “isco” para esta entrada encontra-se no fascínio pela “anormalidade”, pelo bizarro deparado no útero de uma mulher. Ela é Claire Niveau (Geneviève Bujold), uma atriz de cinema, uma beleza exterior assim como interior, afirma Elliot Mantle enquanto declara no meio da consulta que deveriam existir parâmetros de beleza completos. O seu útero é disforme, é como fazer sexo com um mutante, afirma alterado o outro gémeo, uma particularidade que coloca Claire no seio desta partilha entre dois homens, que auto-mascaram um no outro, formando uma só identidade. Provavelmente todo este “recreio” não se resume a um disfarce completo, a um “faz-de-conta”. Eles são dois, mas como seres individuais eles são apenas um único. Um feto completo que origina um completo adulto de experiências próprias e exclusivas.

Cronenberg explicita esta psicologia quase telepática entre gémeos através de uma invocação mutante. Serão os gémeos verdadeiros mutantes, um ser repartido pronto para tomar mais que um espaço? A alegoria utilizada para essa discussão está na utilidade das passagens dos irmãos siameses, unidos num só corpo e com a necessidade de separação para motivos para sobrevivência de, pelo menos, um deles. No caso dos Mantle, a “separação” leva-lhes à destruição dessa identidade, à morte do indivíduo. Nesse sentido, o desempenho de Irons é também ele um desafio, as posturas de duas personagens distintas que se vão confundido constantemente na narrativa, diluindo-se numa só, a catarse da sua personalidade. O espectador é desafiado a reconhecer estas figuras, para no fim, ser abalado com o paradigma lançado por Cronenberg: o que é um gémeo? Existe naturalidade num gémeo? Como funciona a sua saúde psicológica? Existe assim, no seio deste paradigma, uma certa tragédia grega. Nasceram juntos, terão, portanto, direito a morrerem juntos?

Dead Ringers não explora da maneira que requeremos, não atribui a esta intriga de obsessão as derradeiras respostas às provocações lançadas. Simplesmente empresta-as a uma cauda de tormento, uma alucinação que vai desde o body horror tão próprio de Cronenberg (que controla essa loucura para um estado das personagens; sonhos, devaneios, fantasias e perdição) até à psicologia febril e fragilizada que atenta o espectador com a constante dúvida. Este é sobretudo um filme, que tal como a profissão dos seus protagonistas, encontra a “beleza” no seu interior, uma deveras distorcida que só os “loucos” poderão verdadeiramente amar. É como fazer sexo com um mutante…

Notícias