Terça-feira, 19 Março

«A Múmia»: A Maldição da Fobia Pagã

A descoberta dos majestosos tesouros e túmulo de Tuttankhamon suscitou entre os anos 20 e 30 uma chamada “febre do Egipto”. O mundo encontrava-se maravilhado por estas vidas passadas, civilizações anteriormente presentes nas páginas bíblicas do Exodus, e com cada descoberta surgiria uma nova acha para esta inconsolável “fogueira”. Contudo, algo desafiou as próprias convenções das atuais sociedades ocidentais, maioritariamente judaico-cristãs: os rumores de uma maldição que vitimizava quem se encontrasse ligado à descoberta do tão famoso sarcófago do jovem príncipe que um dia governou as margens do Nilo.

Essa maldição era advertida em hieróglifos (segundo os rumores existia uma placa de cerâmica na antecâmara de Tuttankhamon com o seguinte aviso: a morte irá atacar com seu tridente aqueles que perturbarem o descanso do faraó, em mensagens de milénios com invocação a deuses que só este povo acreditaria. Sim, para esta sociedade vivente do século XX, as “pragas egípcias” eram heresias, um paganismo que se teria, acima de tudo, de ver descredibilizado. O cinema, porém, não descredibiliza qualquer acto pagão, mas a Sétima Arte veste uma religião e Hollywood era maioritariamente cristã, acreditando nas suas “boas” morais, requisitando-as para as suas subliminares mensagens e desenvolvimento das referidas personagens como exemplos a seguir numa sociedade moderna.

Em 1932, estrearia, tendo como foco esse mediatismo, o filme de terror A Múmia de Karl Freund, com Boris Karloff a vestir a pele do “monstro” do título, um sacerdote condenado em vida como na morte, e uma maldição que empesta a sua carne como naqueles que o reencontrarem. Não foi a primeira vez que Karloff vestiu a monstruosa pele ao serviço da Universal Pictures, A Múmia estrearia um ano depois de Frankenstein de James Whale, onde o ator britânico reencarnava na criação do tão “louco cientista”. Ambos os filmes apresentariam criaturas renascidas, os primórdios dos mortos-vivos cinematográficos, e tendo em conta que a múmia (que se dava pelo nome de Imhotep) e o “monstro” (somente o monstro, erradamente seria conhecido como Frankenstein em gerações futuras) partilhavam o mesmo rosto, a fisionomia algo sinistra de Karloff alimentava essa fantasia palpável, o espetador conseguiria facilmente reconhecer essa “monstruosidade” pagã.

Tal como acontecera em Frankenstein, livremente baseado no romance de Mary Shelley, era a ciência a mais profunda blasfémia, a aspiração dos dotes divinos só meramente merecidos a Deus, o de criar vida, nunca poderiam adereçar o mais comum dos mortais. Em A Múmia, um outro ramo cientifico permanecia na lista de provocações, a arqueologia, o explorar de civilizações antigas e o de devolver à luz do sol, artefatos doutras épocas. O cinema despreza a ciência, as suas raízes cristãs repudiam qualquer indicio de igualdade da Humanidade com Deus, tal como o Renascimento causara na antropologia. Mas na obra de 1932, uma outra provocação era feita, o paganismo, a intervenção de uma divindade fora do nosso circuito de apelação. Deuses antigos, crenças extintas, novamente a coabitarem com os ensinamentos de Jeová e de Cristo, um verdadeiro terror para as doutrinas de “boas morais” (aquilo que aceitamos hoje, tendo muito como base os ensinamentos bíblicos).

O filme de Karl Freund diversa vezes menciona essa coabitação de uma forma atentada. “Estamos a ouvir uma linguagem que não era falada à 3.000 anos”, “Uma caixa que não era aberta há mais 3.000 anos”, frases como estas servem para A Múmia relembrar-nos que estamos perante um extenso circulo de paganismo, estranho para o Mundo em questão e alimentando-o com uma tremenda fobia. O filme leva ao espectador à saída, se não ao desejo desta. Ao próprio preconceito oriental, em disputa com uma superstição da outra “margem”. “Eu não gosto de ser tocado, é um preconceito oriental”, adverte Boris Karloff, alimentando essa gradual divergência entre quotidianos.

No final, como é previsto, o Ocidente vence, a Múmia regressa ao seu anterior estado, a do “inofensivo” cadáver com efeitos de peça de museu, e o aviso é feito às audiências. O de não abrir compartimentos milenares nem sequer perturbar o sono do “faraó”, não por ameaça à Humanidade como a conhecemos, mas à crença vivida pela Sétima Arte. O eterno medo pelo paganismo!

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