Sexta-feira, 19 Abril

«Hiroshima Meu Amor»: o romance entre ruínas e cicatrizes

Produzido inicialmente como um documentário, Alain Resnais compôs acidentalmente (ou não) a sua primeira longa-metragem não documental, embora traçando as mesmas matrizes do género que tanto abraçou. Hiroshima Mon Amour é visto como o mais importante filme pós-Segunda Guerra Mundial, uma das catarses para a expansão da célebre Nouvelle Vague, a manifestação cinematográfica pioneira dos anos 60 e 70, e uma das primeiras obras que durante vários anos usufrui o estatuto de filmicamente não influenciado (apesar nos dias de hoje salientar uma certa veia neorrealista disfarçada), interagido como algo completamente novo dentro do panorama cinematográfico. Será Hiroshima Mon Amour tudo isto?

Inicia-se com um diálogo em contornos de metáfora, de contrastes filosóficos e refletivos sobre os incidentes e réplicas trazidas por Hiroshima. Diálogo esse proclamado com uma total inexpressividade vocal, mas figurado por entre imagens que intercalam com os ardentes corpos do par protagonista, revelando um amor de contornos platónicos entre a francesa Emmanuelle Riva (“mil mulheres numa só“) e o japonês Eiji Okada. Resnais, sob tamanha astúcia, encarna estas imagens na própria cidade (que emerge como uma Fénix entre as cinzas consequenciais de um conflito) e maneja-as em prol de uma alusão. Essa mesmo, referente aos perigos do Passado, e o pesar destes nos constantes vislumbres ao Futuro.

Em jeito fatídico e por via de flashbacks, o autor transforma as suas personagens em meros fantasmas ambulantes, incrédulos ao Futuro e presos à resistência das suas memórias passadas. Hiroshima Mon Amour constrói desde raiz uma nova narrativa e injeta na sua acção o existencialismo, algo que será automaticamente visto como uma das fundamentais características dos primeiros anos da já referida Nouvelle Vague e dos seus autores. A partir daí surge uma jornada de contraditórios, duas figuras a mercê do magnetismo das suas emoções, mas em contagem descendente ao sucumbo da tragédia pessoal. O arranque de uma para dar lugar à outra, tragédias nativas que vivem em terra e na memória, e essa última a interligar-se com a identidade.

Existe talvez um pouco de evocações shakespearianas neste romance trágico (graças ao argumento escrito pela então escritora Marguerite Duras), pedestres de um filme documental que sonha ser ficcional e, sob a “capa” de Ícarus, o consegue encarnar na perfeição poética, sem o encontro com a fatal estrela solar. Embora a palavra romance desperte um interesse no espectador em redescobrir a obra de Resnais, um irreverente na sua arte, é fácil sentirmo-nos isentes de emoção perante o enredo transitório de Hiroshima Mon Amour e pelos desempenhos alienados dos seus protagonistas, assim como as emoções exageradas e fabulistas que transportam a ação para um lado intermédio do cinema e teatro (o realizador demonstraria o amor por esta arte ao longo da sua carreira). Mas, tal como os fantasmas invocados na sua narrativa, este filme transfigura-se no pensamento e rouba um pedaço de nós dia-a-dia, o passado persegue-nos, assim como o amor improvável nesta cidade caída e erguida, pronta para o Futuro.

Alain Resnais construiu uma obra-prima, um filme admirável sob uma densidade inexplorável. Metafórico e poético como poucos. Daqui despoletou as primeiras evidências do estilo fincado da Nouvelle Vague, mas foi o poema filmado que ficou e que ecoou nas suas graças. É difícil gostar de Cinema e não venerar Hiroshima Mon Amour. Uma arte acidental, mas Arte!

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