Quarta-feira, 24 Abril

«O Cerco»: a devoção de Maria Cabral a um país nos “verdes anos”

O Cerco do título advém da “barreira invisível” que rodeia a protagonista – Marta (Maria Cabral) – uma mulher moderna sufocada por um constante “poço” financeiro e social num país de estéticas, em clara negação com o real panorama que vive.

Datado de 1970, António da Cunha Telles recria um quadro moderno dum Portugal de divulgação indesejada, um país reduzido a um silencioso pedido de ajuda, ao mesmo tempo que se privava desse mesmo auxílio. Com os anos passados, O Cerco tornou-se incontestavelmente num filme moderno e acidamente cronista. Um ensaio mais verdadeiro, sofisticado e fiel à nossa essência como Nação do século XX do que a maioria das produções cinematográficas e televisivas de produção atual.

Pois bem, este foi um dos, não fundadores, mas estabilizadores do Cinema Novo, um dos modelos priorizados da geração vanguardista de cineastas portugueses, embebidos por influências da Nouvelle Vague Francesa e do neorrealismo italiano literário (neste caso a imagem de repressão social como elemento crucial deste último ponto). António da Cunha Telles que fora produtor de Verdes Anos (1964) e Mudar de Vida (1966), ambos de Paulo Rocha, afirmou que filmara O Cerco com os “restos” de película 35 mm destas mesmas fitas. O filme foi concebido durante os intervalos do trabalho publicitário que o produtor concretizava, e a atriz, Maria Cabral, que segundo este, surgindo de “pára-quedas”, tendo-se gradualmente firmado como uma musa inspiradora desta panóplia de crónicas viventes, como também uma das paixões cinéfilas do então crítico Joaquim Novais de Teixeira.

Porém, é difícil não se rever neste O Cerco e muito menos na protagonista, uma alma frágil e gélida num mundo ainda mais frio. O seu percurso enquanto “heroína” é intercalada numa rotina claustrofóbica, a simulação de uma prisão labiríntica, onde o quotidiano se funde com os gestos religiosamente consumidos por esta. Mas a verdadeira essência e propósito, quer do filme, como de Marta, não é a sobrevivência face aos ecos sociais e financeiros de um regime que limitava as possibilidades culturais e sofisticação dum país carente, mas sim a procura da “felicidade” nesse mesmo meio.

Como uma definição quase novelesca e digna de um guia de auto-ajuda, porém, descrita no filme como algo inatingível … e pior, frágil e sistematicamente “pressionado” por essa sociedade de teor consumista e propicias às aparências (as sardas postiças da atriz servem como alusão). Talvez seja por isso que Marta “protege” os dois peixes dourados em sua banheira numa cena inicial, deixando recado para “quem fechar a porta” – “Temos dois amigos na banheira. São um casal feliz, trate-os com cuidado” – ou o facto de o único o amigo da protagonista ser uma personagem de cariz generoso, igualmente ambígua, pedestre de trilhos duvidosos algures entre o ilícito (interpretado por Miguel Franco).

Assim sendo, O Cerco é um filme de reflexões, de uniões entre passado, presente e futuro e os indícios de uma emancipação feminista no meio lisboeta. Maria Cabral pode não ser uma atriz excepcional e verdadeiramente talentosa, mas a aura que transmite para fora do ecrã é de um sedutor magnetismo, as comparações com a bela Audrey Hepburn não são em vão. Ela é a pedestre, a catalisadora por este país longe de encanto e a heroína de um estilo fílmico que declararia independência ideológica a uma direcção e sacrificaria a fantasia cinematográfica em prol de um realismo tão nosso. Se por vezes acusamos dos filmes portugueses serem geralmente tristes, melancólicos e pessimistas, a culpa não é deles, mas nossa por contribuirmos com tal imagem no nosso dia-a-dia.

O Cerco, mesmo passados 40 anos desde a sua bem-sucedida estreia e sessões esgotadas semanas a fio na sala do Estúdio (como também recebido com elogios na edição de Cannes de 1970), é uma visão surpreendentemente moderna e ousada. Uma relação quase carnal para com o espectador. Talvez seja a partir daqui que o cinema português tenha perdido, por fim, a sua inocência. 

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