Terça-feira, 23 Abril

«As Nuvens de Sils Maria» ou o Mito da Autenticidade?

Sobre “As Nuvens de Sils Maria” já muito foi escrito. Alguns vêem nele uma crítica ao culto da celebridade e à forma como o reconhecimento parece estar indexado à idade de uma atriz, outros dedicam-se a desenrolar as narrativas e as meta­narrativas que se vão entrelaçando entre as personagens no ecrã, mas a maioria acaba por reconhecer na relação de Juliette Binoche e Kristen Stewart (bem como na das personagens que representam) o núcleo mais interessante do filme.

Se Binoche já mostrou várias vezes do que é capaz, Stewart, quer pelas escolhas que fez, quer pela sua imagem mediática, parece ainda ter de provar que não é apenas uma adolescente carrancuda e desajeitada. Podemos tentar argumentar sobre o mérito de uma ou de outra, mas parece-­me mais interessante que, mais do que atrizes, comparemos aqui os métodos ou “escolas” que utilizam: uma, o naturalismo mais ou menos como Stanislavski o desenhou, outra, a sua leitura parcial d’”O Método” de Lee Strasberg.

No início do século XX, Stanislavski começou a desenhar, na então Rússia, uma colecção de ferramentas que serviriam o ator na construção de uma personagem e de uma representação que, ao contrário do mais artificial utilizado na época (e que ainda conseguimos ver nos primórdios do cinema), defendia um estilo que se aproxima mais da reação natural de alguém que se encontra nas situações encenadas e que, por isso, se definiu como “naturalismo”. Mais do que uma doutrina ou uma forma cristalizada de trabalhar, Stanislavski sempre reforçou a ideia de que o que oferecia era uma coleção de ferramentas para ser selecionada e adaptada individualmente e, durante anos, foi alterando-a e melhorando ­a com a sua experiência.

O impacto de Stanislavski foi sentido em todo o mundo e, depois de duas incursões em 1923 nos Estados Unidos, eventualmente adaptado à realidade desse país. Aqui entra em cena Lee Strasberg que, com a miopia e o exagero da sua cultura, fez uma leitura parcial e demasiado rígida de Stanislavski. A esta leitura chamou “O Método”. De toda a riqueza da panóplia de ferramentas que Stanislavski disponibilizava, Strasberg só se focou numa (que curiosamente até tinha já sido abandonada pelo seu autor): a da realidade emocional ou afetiva da personagem. Para Strasberg, a realidade emocional da personagem tem de ser construída pela experiência verdadeira do ator. Se, à primeira vista, esta não parece ser muito polémica, os extremos a que Strasberg levou alguns dos seus atores estão bem documentados e, desde cedo, fez com que todo o seu método fosse criticado (a quase tortura mental a que se tornou normal sujeitar os atores foi só mesmo superada com a forma como se leu Artaud anos depois).

Para Strasberg, qualquer tensão ou sentimento que pudesse ser lido na personagem teria de ser expressado e tornado óbvio, alimentado pela experiências e até pelos traumas do actor. O exemplo perfeito é Marlon Brando em “Há Lodo no Cais” a brincar com as luvas de Eva Marie Saint. Há aqui uma descrença no texto e na capacidade de este passar ambiguidades e a necessidade de o tornar óbvio. Não se pense que estou a dizer que Brando é um mau actor, estou a dizer que há na sua representação o equivalente a uma banda sonora que sublinha todos os momentos do filme e que, visto fora do paradigma de representação de onde vem, se torna pesado ou mesmo ridículo. Mais do que a “verdade psicológica” da cena, o que Strasberg acabou por reforçar é a assustadora impossibilidade de conhecer O Outro.

Anti­-intuitivamente, Strasberg acaba por se basear na chamada “Ilusão de Transparência” que mostra termos a ilusão de que os nossos pensamentos e emoções (o nosso estado psicológico) são mais fáceis de ler por outra pessoa do que na realidade o são. Ao pegar em Stanislavski, Strasberg acabou por descobrir (apesar de nunca ter ganhado consciência sobre isso) que é impossível conhecer o que o outro sente ou pensa e procurou formas de tentar exteriorizar esta vida interior invisível. Na realidade, o trabalho de ator é (como todas as nossas ações, segundo a Psicologia Social) contextual e cultural. Basta referir o Efeito Kuleshov, onde a montagem da mesma imagem de um ator, com cenas intermédias diferentes, nos fazem ler a expressão deste de formas diferentes, para o perceber.

Vale a pena referir também o trabalho de Thalia R. Goldstein, mais precisamente a sua participação em “The Social Science of Cinema”, editado por James C. Kaufman e Dean Keith Simonton. Neste artigo, Goldstein refere alguns dos seus estudos em que mostra termos a capacidade de reconhecer experiência, mas não escolas utilizadas pelos atores e, mais importante, que em comparação com técnicas baseadas em Diderot, o método de Strasberg é inferior na transmissão da emoção para os espectadores. Apesar disto tudo, “O Método” de Strasberg vingou.

Porquê? Para tentar compreender o sucesso de Strasberg, podemos procurar a resposta no trabalho de um economista francês: Frédéric Lordon. Segundo ele, há na base da ideologia Neoliberal um hiperindividualismo que assenta em dois mitos: a Liquidez e a Autenticidade. O primeiro é construído sobre uma noção económica de um investimento hesitante entre a possível perda e a liquidez financeira, focando-­se mais na segunda sem nunca assumir os seus investimentos. Associada a leituras pós­-modernas, chegou ao mainstream mercantilizando a imaturidade como “cool” [ver aqui]. Já muito foi escrito sobre esta liquidez, sendo Zygmunt Bauman um dos seus grandes teóricos, não valendo a pena escrever aqui sobre isso.

O segundo mito é mais pernicioso. Em “Willing Slaves of Capital” (sem qualquer edição em português), Lordon, baseado em Spinoza, mostra como, apesar da dificuldade que temos em definir o “Eu”, rapidamente reivindicamos os desejos que sentimos como “nossos”. Se olharmos para o estudo de Norman Maier de 1931 [ver aqui] conseguimos ver como não temos sequer noção de onde vêm as nossas ideias. Essa falta de consciência (ou a sua construção fabulada a posteriori), também é facilmente reconhecível nos nossos desejos. Posta em questão a nossa capacidade de reconhecer a origem ou a legitimidade dos nossos desejos, Lordon mostra, no mesmo livro, como esse desejar “autêntico” é apropriado pelo projeto neoliberal e alinhado com os seus interesses, de forma semelhante à “vocação” na leitura do Capitalismo de Max Weber.

Sob pretexto de nos exprimirmos ou de “fazermos o que quisermos”, há uma corrente de sujeição ao paradigma corrente de forma acrítica. Mais do que a venda do trabalho e alienação da mercadoria, o trabalho contemporâneo centra­-se agora no crescimento pessoal: uma pessoa não pode apenas sujeitar-­se à construção social da economia, tem de querer ser melhor, encontrar crescimento pessoal e profissional, pertencer a um projeto seu. O projeto do “pensamento positivo” da psicologia foi apropriado com prazer pelo projeto neo­liberal e disseminado por todo o mundo profissional. Quantos de nós não fizeram já parte de formações de “team building”, “desenvolvimento pessoal” e todo esse chorrilho pseudo­científico? Como Jean Robert Viallet mostrou na sua trilogia “La mise à mort du travail”, estas correntes estão mais interessadas em alinhar o desejo dos trabalhadores ao desejo­ mestre da economia do que em qualquer emancipação social e, no entanto, não deixamos de ouvir falar da nossa Autenticidade e dos nossos desejos.

É essa Autenticidade o mito que alimenta “O Método” de Strasberg, a ilusão de uma vida interior rica e bem intencionada que, apesar do que se faz e consome, se torna visível, tal como são visíveis os esgares e os torcer de mãos dos atores no grande ecrã. Uma Autenticidade a si próprio que é reconhecível por todos e autoridade suficiente para nos redimir dos nossos erros. Mais do que mostrar-nos que estes dois sistemas de construção de personagem se confrontam em Binoche e Stewart, o filme de Assayas mostra que o método desta última é insuficiente apesar do seu talento. Os suspiros, o resmungar, o morder de lábios mostram, não uma vida interior rica, mas as escolhas que a atriz fez para aquela personagem, servindo mais à distração do que à narrativa.

Se houve quem louvasse a sua prestação, foi porque, no meio das cenas que tem sozinha (alguns dos momentos mais fracos no filme), apenas fica a cifra, indecifrável e incompreensível. No final, Stewart continua a ser a Bella do Twilight que não consegue fazer mais do que chorar pelos cantos, com uma paleta emocional muito limitada. Se quer ver o potencial que Stewart desperdiça continuamente há anos, veja­-se “Into the Wild”, quando rouba o filme todo em apenas algumas cenas.

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