Quinta-feira, 28 Março

«Showgirls» – a obra-prima perdida dos anos 90?

Realizado pelo até então conceituado autor Paul Verhoeven (que tinha transformado a América com o trio RoboCop, Instinto Fatal e Desafio Total), Showgirls é ainda para muitos o grande passo em falso do cineasta em solo americano.

Vencedor de 8 Razzies – os Oscars para os piores filmes, incluindo Pior Filme de 1996 e Pior Filme da década de 90 (em 2000), Showgirls veio, após o virar do milénio, a ser redescoberto e reavaliado como objeto satírico, já fora até do universo “camp” (i.e. tão mau que se torna bom).

 

Jacques Rivette – o mais influente defensor

Ironicamente, esta reavaliação começou a germinar do campo do chamado “cinema de autor”. Foi o recém-falecido Jacques Rivette uma das primeiras vozes públicas de destaque a erguer-se favor do filme. Ainda em 1998, numa entrevista a propósito do lançamento do melhor recebido Starship Troopers (uma outra sátira por sinal, só que desta feita repleta de testosterona), Rivette diz ter gostado do filme mais recente de Verhoeven, mas fez questão de dizer que o melhor filme americano do holandês permanecia Showgirls. “Tal como todos os filmes de Verhoeven, é muito desagradável: é sobre sobreviver num mundo populado por imbecis (…) De todos os filmes passados em Las Vegas, Showgirls foi o único realista”

 

Novas vozes

Mais tarde, a Slant decidiu elaborar uma crítica sobre o filme na ocasião do lançamento da versão “VIP” em DVD. Uma crítica que deixaria muitas pessoas pasmadas, com a sua defesa de coração aberto, mesmo pesando as heranças óbvias do filme. “Plagiou copiosamente ‘All About Eve’ e ’42nd Street’” diz-nos o crítico Henderson, atribuindo a classificação máxima ao filme (4 estrelas em 4).

A PopMatters decidiu em 2011 colocar dois dos seus colaboradores a debater sobre o filme, na rubrica ‘ReFramed’ – que servia precisamente para relançar o debate sobre filmes que tinham sido mal interpretados na sua exibição original: Calum Marsh e Jordan Cronk. Cronk faz questão de afirmar que é “mandatório” contextualizar esta obra no tempo: “é importante notar a série de primeiros filmes que fez na Holanda ao longo dos anos 70”; Marsh aproveita para dividir a obra do realizador em “completamente séria” (usando o exemplo posterior de Black Book) e “assimiladora de géneros e desconstrutora de arquétipos” (o caso, lá está, de Showgirls), pendendo o consenso crítico para a obra-prima no primeiro caso e para a chacina na praça pública no segundo, quando o segundo caso pode ser tão ou mais fascinante.

Já em 2014, é a vez do canadiano Adam Nayman escrever o livro It Doesn’t Suck: Showgirls, depois de verificar que não estava sozinho na sua defesa. Faz parte das primeiras páginas do livro o seu encontro com a realizadora e ex-crítica do Cahiers du Cinema, Mia Hansen-Love, uma outra fã ferverosa do filme. Tão fã, que fez questão de incluir no argumento do seu mais recente Eden este mesmo debate entre os seus personagens sobre Showgirls: obra-prima ou lixo. Dedicando um livro inteiro à reavaliação da película, Nayman vai mais longe ainda na sua torrente de referências. Todo o cinema de Verhoeven serve como análise, e chegam, por exemplo, referências cine-geográficas a Las Vegas para cruzar com outras histórias de amor que não correm bem como The Las Vegas Story“(1952), Meet Me in Las Vegas (1956), Honeymoon in Vegas (1992), Fear and Loathing in Las Vegas (1998) e Leaving Las Vegas (1995). Entre outros detalhes preciosos que nos respondem a questões que nunca pensámos ter sobre Showgirls temos: a) o uso de Steadicam por parte de Verhoeven e o diretor de fotografia Jost Vacano para ter um visual mais “livre” e “fluído” – uso aprimorado por Kubrick em Shinning e b) o uso de uma meta-narrativa consciente na estrela nascente explorada pela máquina do espetáculo na atriz “imperfeita” Elizabeth Berkley por parte do realizador para acidificar ainda mais a sátira.

Tal como Henderson, Nayman, para validar a sua visão, analisa cuidadosamente o longo jogo de espelhos e duplicidades existente. Este jogo chega a cantos profundos mais questionáveis – como a protagonista comer precisamente duas vezes batatas fritas ao longo do filme – mas revela uma validade interna dentro dos seus discursos face à obra e às supostas intenções do autor bastante desconcertante. Nayman destaca ainda que esta duplicidade está também na nossa interpretação do filme, que o filme pode ser uma “obra-prima” e “um pedaço de cocó” em simultâneo, sendo isso que ultimamente defende.

 

Uma obra feminista?

Há portanto aqui três grupos distintos: os que consideram Showgirls um filme mau, os que o encaram como objeto “camp”, rindo-se dele, e os que o veneram profundamente, admitindo que Verhoeven ri-se também connosco, e não nós dele – no qual eu próprio me encontro inserido, confesso. No entanto, existe uma cena-chave perto do final do filme – a cena da violação – que consegue deixar todos os grupos desconfortáveis. Para nós, verdadeiros defensores da obra, é a prova derradeira das intenções sérias de Verhoeven: um convite a pensar politicamente sobre a maneira como Hollywood continua a tratar as suas estrelas femininas.

E o leitor? O que acha de Showgirls, 20 anos depois da sua estreia desastrosa?

Notícias