Quarta-feira, 24 Abril

A educação do Senhor Robot

Se nos finais dos anos 1990 alguém dissesse que a contestação ao capitalismo seria uma das tendências mais profundas dos primeiros anos do século XXI, marcando a década que viu nascer movimentos como Occupy Wall Street, ou coletivos como o grupo Anonymous e organizações como a Wikileaks, o mais provável era que a mensagem não fosse recebida com o maior dos entusiasmos. Mas o hoje as narrativas ditas revolucionárias fazem parte do imaginário popular, tendo mesmo uma importância incontornável na sala de operações do mundo do entretenimento – algumas das produções mais emblemáticas oriundas de Hollywood têm justamente por base críticas mais ou menos explícitas às condições políticas, económicas, e culturais do universo onde se inserem. Olhando para tempos bem recentes- e nem é preciso estar particularmente atento porque as produções em causa são autênticos fenómenos de massa – verifica-se que esta tendência cristaliza a imagem de um momento particularmente conturbado: The Dark Knight Rises, The Hunger Games, Rise of The Planet of The Apes, Elysium, Snowpiercer, em modos diferentes e em contextos específicos, são filmes que fixam uma imagem de contestação em relação às condições do presente na cultura popular. Mark Fisher terminava um artigo para a Frieze com uma interrogação sobre o sentido dessa tendência: será que estas revoluções de Hollywood podem mesmo abrir caminho para um novo sentido de revolta popular?

Mr. Robot, a série que acaba de ser premiada com o Globo de Ouro para melhor série dramática, é uns dos mais recentes exemplos desteflirt entre o imaginário popular e fantasias de revolta. É aliás interessante estabelecer um contraste entre o grande número de narrativas dedicadas a expor as maquinações do neoliberalismo, projetando nos espectadores um sentimento de agência sobre o autêntico leviatã que é o sistema financeiro contemporâneo, e a reduzida perceção de possibilidade de materialização de um modelo alternativo. Recuando um pouco até aos anos 1980, já Margaret Tatcher usava como slogan a expressão “there is no alternative” (TINA, como acabou por ficar conhecido), expressando com particular agressividade a noção de não haver alternativa à globalização do capitalismo e aos “valores” do mercado livre. Esta polarização entre revoluções à escala planetária e a aparente impossibilidade de pensar outro futuro, por mais caricatural que seja, contribui apesar de tudo para estabelecer alguns dos limites das políticas de representação política.

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O caso do Mr. Robot, a série criada por Sam Esmail em torno de um grupo de hackers com forte consciência política, é particularmente interessante pela forma como se posiciona em relação àquilo que identifica ser o inimigo. Uma das características da série é fazer do espetáculo da revolta uma parte fundamental do “processo revolucionário”. A publicidade as ações da fsociety, o grupo de hackers liderado pelo Mr. Robot, é parte integrante do programa de atividades que levará à queda dos donos disto tudo. Mas se a equação entre “espetáculo” e “poder” é já uma questão que atravessa The Hunger Games, a atenção dedicada à importância do hacking e em especial a forma como localizam essa estratégia no presente, no mundo contemporâneo, é uma das decisões criativas da maior relevância dramática.

Um dos meus filmes favoritos dos nos inícios dos anos 2000 é um filme alemão que com o passar do tempo tem caído um pouco no esquecimento. “Os Edukadores” (2004), filme realizado por Hans Weingartner que contava a história de um grupo de ativistas com o mesmo nome empenhado em assustar as classes mais privilegiadas e abastadas, dava conta de um modo de operação bastante peculiar: durante a noite “os educadores” invadiam as casas, desarrumando a mobília interior, dispondo-a em configurações excêntricas e pouco comuns. Deixavam algumas mensagens ameaçadoras (“os vossos dias abastados estão contados”, ou “vocês têm demasiado dinheiro) e ficavam por aí. No dia seguinte, procuravam eco das suas ações nos jornais, como se o impacto mediático fosse uma medida do sucesso das suas atividades. Uma das narrativas paralelas (mas da maior importância dramática), prende-se com a existência de uma dívida com origens “injustas” que exerce uma influência negativa sobre a vida de um dos personagens. Uma das protagonistas, à custa de um acidente rodoviário no qual foi embater contra um Mercedes, tem de pagar um balúrdio por não ter qualquer tipo de seguro no carro. Todo o seu trabalho é então dedicado a pagar uma dívida a alguém pertencente a uma classe já de si privilegiada.


Os Edukadores

Ora, esta questão da divida é um dos aspetos fundamentais da série. Mr. Robot. Mr. Robot (Christian Slater), com a ajuda de Elliot (Rami Malek) e de mais uns alguns peritos em informática, tem como objetivo hackar a corporação responsável pela manutenção dos dados informáticos relativos às dividas individuais de toda a gente. Destruindo o sistema financeiro, finam-se os dias dos abastados. A comparação dos mecanismos de acção dos dois grupos – Edukadores e fcsociety –  parece ser bastante útil para se perceber aquilo que mudou em tão pouco tempo. Os 11 anos que separam as duas produções fixam dois pólos fundamentalmente distintos.

No caso das atividades dos Edukadores, aquilo que está em causa passa pela estetização da ação política, onde a atenção é dedicada à manipulação de bens materiais com o propósito de vir a extrair desse gesto algum tipo de consequência política (do tipo: “os ricos vão ficar cheios de medo e inseguros com as nossas ações”). A preocupação é sempre com bens materiais, signos do luxo consumista. É surpreendente, parece-me, não haver qualquer menção ao aparato digital que já nessa altura sustentava o sistema financeiro. A relativa novidade de Mr. Robot foi ter encontrado um sistema de representação capaz de se opor à abstração imaterial dos fluxos financeiros, que em muito condiciona as condições materiais do quotidiano. Não terá o alcance fractal de um filme como o Blackhat: Ameaça na Rede, mas os guionistas trazem ainda assim para primeiro plano a total penetração do sistema financeiro em todas as dimensões do possível, a partir de uma narrativa paralela onde somos informados que a Evil Corporation foi responsável por um desastre ambiental de graves consequências.

Mr. Robot dirige a ação revolucionária para um plano abstrato, politizando uma postura estética. No contexto específico da série, a postura estética da máscara – do anonimato – é um ataque mortal às leis do capital, que em larga medida se encontram dependentes da monitorização de um sem fim de parâmetros. Sem identidade, sem rasto de atividade online, quer dizer, sem colonização de data abstrata, os “mercados” tornam-se criaturas sem órgãos, incapazes de ver o mundo e de o manipular. De forma significativa, uma das assinaturas da série passa pela quebra recorrente da chamada quarta parede, com Eliott a interpelar diretamente o espectador por diversas ocasiões, com maior ou menor importância dramática. Hoje, ao que parece, a mobilização política é mais facilmente representada na pura lógica de “espetáculo”, na qual o espectador substitui o lugar e papel do cidadão.

Se os Edukadores ainda agiam diretamente sobre as condições materiais que pretendiam denunciar, a fsociety vem cristalizar a imagem de revolta e transformação da sociedade enquanto exercício de desfiguração mediática.

 

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