Quinta-feira, 25 Abril

Orson Welles fimou no Ceará: a verdade do realismo brasileiro

Orson Welles durante gravações no Ceará (Foto: Chico Albuquerque/Divulgação)

Aproveitando a efeméride da comemoração do centenário do nascimento de Orson Welles no passado dia 6 de maio, o Festival Cine Ceará recordou a passagem do realizador pela região, em 1942, onde recolheu material para uma curta destinada a integrar o filme documental inacabado It’s All True, sobre temas da América Latina e que inclui um episódio trágico que acabou por precipitar o final da rodagem. Este evento, que contou com a participação de diversos jornalistas brasileiros e internacionais, teve a moderação da jornalista Rô Caetano e ainda os depoimentos dos colegas Luiz Zanin, do jornal Estadão, Carlos Alberto Mattos, do Globo, e Neusa Barbosa, do CineWeb.

Ainda a viver do sucesso de O Mundo a Seus Pés/Citizen Kane, estreado em 1941, Welles aceita a encomenda de fazer um documentário no Brasil. Já depois de terminar O Quarto Mandamento/The Magnificent Ambersons, o seu segundo filme com a RKO, no ano seguinte, o realizador americano desloca-se à América Latina como forma de dar expressão à aproximação à política de boa vizinhança dos Estados Unidos durante a operação de charme nos anos 40, motivada pela 2ª Guerra Mundial. A ideia seria captar o folclore do carnaval no Rio e imagens que captassem um estilo itinerante.

O documentário havia sido solicitado por Nelson Rockfeller e integrava uma sequência de tourada no México, um segmento sobre o Carnaval no Rio e ainda uma sequência num preto e branco bem contrastado sobre a odisseia de quatro jangadeiros que efetuaram uma viagem de jangada desde Fortaleza até ao Rio de Janeiro. Só que em vez desse lado mais folclórico e colorido, Welles deixar-se-ia cativar por um lado bem mais realista do Brasil dos mulatos e caboclos.

No caso, a afirmação de um grupo de pescadores do Ceará que há 73 anos decide chamar a atenção do Presidente Getúlio Vargas para as miseráveis condições de vida de milhares de colegas de profissão, sem direito a qualquer pensão por parte do Estado. Empreendem assim uma viagem de jangada de Fortaleza, no nordeste brasileiro, até ao Rio de Janeiro que haveria de ficar na história da região, do regime política da altura, a viver o seu Estado Novo e acabaria mesmo por chegar às manchetes da imprensa americana.

A façanha seria levada a cabo por quatro pescadores que percorreram a bordo de uma pequena jangada simples os 2381 kms que separam a praia do Peixe, em Fortaleza, e a baía de Guanabara, no Rio de Janeiro. Sem qualquer instrumento de navegação ou mapas. O feito ficou a dever-se à coragem e determinação de Manoel Olímpio Meira (Jacaré), Raimundo Correia Lima (Tatá), Manuel Pereira da Silva (Mané Preto) e Jerônimo André de Souza (Mestre Jerônimo), embarcando a 14 de setembro de 1941 e chegando ao destino dois meses mais tarde.


(Foto: Chico Albuquerque/Divulgação)

A odisseia acabaria mesmo por se relatada na revista Time (de 2/12/1941) num artigo intitulado Four Men on a Raft (Quatro Homens numa Jangada), afinal de contas o título da curta que Orson Welles filmaria como parte de uma trilogia dedicada ao Brasil.

No entanto, durante alguns planos captados na Baía de Guanabara, dá-se a tragédia quando a jangada de Jacaré, o líder dessa equipa, se vira. Reza a história que o pescador nunca mais foi avistado, embora subsistam ainda rumores de que os seus restos mortais teriam sido encontrados no interior do estômago de um tubarão e até mesmo que jacaré teria sido algo de um atentado com motivos políticos.

Seja como for, o quarteto de jangadeiros seria recebido em apoteose pela população do Rio e mesmo recebido pelo ditador Getúlio no Palácio do Catete. Já para o realizador americano, a sua aventura terminaria ali, pois a RKO aproveitara a tragédia para suspender o projeto.

Felizmente, toda esta pequena odisseia ficou devidamente relatada pelo professor de cinema Firmino Holanda que seguiu de perto a experiência brasileira de Orson no livro Orson Welles no Ceará.

O que o Estado Novo esperava do realizador não era exatamente isso”, refere Firmino Holanda numa entrevista ao Diário de Pernambuco, por ocasião das comemoração do centenário de Welles, preferindo “um retrato edulcorado de um Brasil sem profundas contradições“, esclarecendo que “para a sua ditadura, filmar a miséria das favelas cariocas ou de uma aldeia de pescadores em Fortaleza, como fez Welles, não seria de bom tom.

Apesar de tudo, o documentário It’ all True acabou por ir avante, uma vez que grande parte da rodagem estava já concluída antes das relações entre realizador e estúdio (RKO) seguirem por caminhos diversos, incluindo entrevistas com o diretor de fotografia Joseph Biroc (que assinou, por exemplo, o magnífico It’s a Wonderful Life de 1946) para além de Welles, claro.

Sobretudo pela relevância do segmento Four Men on a Raft (que aqui reproduzimos o link do youtube) que merece bem a pena chegar ao conhecimento do grande público.

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