Quinta-feira, 28 Março

Manoel de Oliveira: «Penso que no país há uma grande indiferença pelo que já realizei»

«Penso que no país há uma grande indiferença pelo que já realizei»

Manoel de Oliveira, em 2013

Tendo vivido até aos 106 anos, Manoel de Oliveira, o mais consagrado dos realizadores portugueses, fez o que mais gostava: escrever e dirigir cinema. Sobre o cansaço e a sua longevidade no mundo do cinema, um dia disse à revista Época: «Não estou cansado, só me canso quando não trabalho».  Ao Público, disse em 2011: «O cinema é o espelho da vida, não temos outro». À Cahiers du Cinema confessou em 2013 «a influência de Buñel, Dreyer e de outros» no seu cinema: «Desde logo, o meu primeiro filme foi influenciado por Chaplin. Mas eu nunca tentei escondê-lo. É a minha cultura, a minha concepção da arte».

Os Primórdios

Nascido no Porto a 11 de dezembro de 1908, Manoel parecia destinado a seguir carreira na gestão das empresas familiares. Mas outros gostos e planos povoam os sonhos do jovem Oliveira, que desde cedo ia ao cinema com o pai ver filmes de Chaplin e Max Linder.
 

Estuda no Porto e completa a sua formação num colégio Jesuíta da Galiza, em La Guardia. Muito antes de iniciar as lides da realização, já Manoel de Oliveira era conhecido por diversas práticas alheias à 7ª arte. Trapezista voador, praticante de remo, de atletismo (foi campeão de salto à vara), piloto aviador acrobático, piloto automóvel, nadador e galã sedutor. Assim o descreve um artigo do JN de 2008 que, recorrendo a revistas da época, desvenda que a sua imagem de marca era a de «um jovem de porte atlético muito bem parecido», cuja fotogenia, em 1929, «enchia as páginas da revista “O Cinéfilo” e fazia suspirar os corações das jovens casadoiras.»

 
 
 
Douro, Faina, Fluvial
Ao 20 anos inscreve-se com o irmão na Escola de Atores de Cinema, e tem desde logo o seu primeiro contacto com o interior da Sétima Arte, ao ser escolhido como figurante no filme Fátima Milagrosa, de 1928.
Por esta altura adquire a sua primeira câmara e começa a recolher imagens da cidade do Porto, que viriam a tornar-se o seu primeiro filme. Apresenta a curta-metragem documental Douro, Faina Fluvial, ainda em versão muda, num Congresso Internacional de Crítica, em 1931. As reações não são as melhores. Os críticos portugueses arrasam quase unanimemente a obra de Oliveira. No entanto, alguns representantes estrangeiros reconhecem-lhe potencialidades cinéfilas. 
 
 
Aniki Bóbó
Mas, Manoel de Oliveira não desiste do seu sonho e continua a filmar, e logo no ano seguinte apresenta uma outra curta-metragem documental chamada Estátuas de Lisboa. Em 1933, volta a rodar como ator no clássico do cinema português A Canção de Lisboa, de Cottinelli Telmo. Já em versão sonora, apresenta a obra Douro, Faina Fluvial no circuito internacional, o que lhe vale algum reconhecimento e incentivo que lhe faltara no seu pais. Até ao final da década, apresenta mais duas obras documentais de pequena monta, ambas em 1938, Miramar, Praia das Rosas com narração de Fernando Pessa e Já se fabricam carros em Portugal

Em 1940 casa com Maria Isabel Brandão Carvalhais. No ano seguinte apresenta mais uma curta-metragem documental, Famalicão, com narração de Vasco Santana. Oliveira preparava já há alguns anos a sua primeira longa metragem ficcional. O projeto, que se denomina Aniki Bóbó, vê a luz em 1942.

 
Rodada em tempo de guerra, esta fábula infantil, faz uma analogia, pelos olhos e ações das crianças, ao momento atual do mundo. A recetividade do público e dos críticos é fria. São apontadas ao estilo de Oliveira exatamente as mesmas criticas que hoje em dia: a lentidão da ação, a imobilidade da câmara e o valor da palavra em detrimento da ação.
 
Sobre o papel da crítica cinematográfica viria anos mais tarde a dizer numa entrevista ao DN: «crítica tem uma função, não é dizer bem nem dizer mal. A função da crítica é fazer compreender ao espectador os filmes, entendê-los. Mas para fazer compreender é preciso que eles os entendam; se não os entendem, também não podem dá-los a entender. Essa é a verdadeira função do crítico: apreciar os filmes. E para os realizadores, para qualquer artista, literário, pintor, ou músico, o que quer que seja, o mais gratificante que pode ter é a compreensão do seu trabalho.»
 
Decidido a refletir sobre o seu futuro no mundo do cinema, Oliveira entrega-se na época a outra atividade, a agricultura, aproveitando igualmente o seu tempo de interregno para se dedicar ao esboço e escrita de vários guiões.

Retorno ao cinema

Volta ao cinema em 1957, com uma curta metragem chamada O Pintor e a Cidade, já a cores, e dois anos depois, apresenta um documentário em formato de média metragem O Pão. A década de 60, foi marcante na sua ascensão. Apresenta a segunda longa metragem de ficção, Acto de Primavera em 1963, e no ano seguinte uma curta-metragem ficcional A Caça. Ainda ignorado no seu país de origem, Oliveira recebe, em 1964, o seu primeiro reconhecimento internacional com o Grande Prémio no Festival de Siena, por Acto de Primavera, e vê uma retrospetiva da sua obra ser exibida pelo Festival de Locarno, no mesmo ano. Em 1965, realiza o último filme em que ele próprio está à câmara, um documentário de homenagem ao poeta e pintor Júlio dos Reis Pereira que se designava As Pinturas do meu irmão Júlio.

Tetralogia de Amores Frustrados

Em 1971, tem início o que Manoel de Oliveira designou como a “Tetralogia de Amores Frustrados” que começa com O Passado e o Presente, um filme que motivou violentas discussões internas entres os seus defensores e depreciadores. Já com o país em liberdade, mas ainda a viver um período de complicada perturbação interna estreia Benilde, ou a Virgem Mãe, em 1975. Três anos depois, retorna a polémica com a adaptação pouco convencional de Camilo Castelo Branco, e Amor de Perdição. Em 1981, completa este ciclo com Francisca, que em Portugal mereceu um “respeitoso” e frio silêncio, mas que apresentado extra-concurso na Quinzena dos Realizadores de Cannes, mereceu elogios como “uma obra prima incomparável com os filmes em competição“. Francisca marcou também o início da colaboração com alguns atores que têm participado em praticamente toda a filmografia de Oliveira, desde então. Nesse mesmo ano recebe no Festival de Berlim, o Interfilm Award, como reconhecimento de carreira. 

Numa entrevista ao Expresso em 2012, é questionado porque é que na relação entre os homens e as mulheres escolheu a frustração? A sua resposta é exlicíta: «É a derrota. A vida é uma derrota. A gente vive na derrota. Nasce contra vontade, e não é senhor do seu destino.»
 

Década de 80

Após a conclusão da Tetralogia de Amores Frustrados dedica-se a outro tipo de projetos. Em 1982, volta ao documentário e realiza uma autobiografia chamada A Visita – Memórias e Confissões que, por seu desejo expresso, só será exibida após a sua morte.

No ano seguinte realiza Lisboa Cultural, uma reflexão sobre a história da cultura portuguesa, e em 1985, para a televisão francesa o documentário Nice, à Propos de Jean Vigo. Ainda em 1985 conclui Le Soulier de Satin, um filme épico de 410 minutos que adapta ao cinema a obra homónima de Paul Claudel. A obra nunca estreou comercialmente em Portugal, mas rendeu a Oliveira a conquista do primeiro Leão de Ouro no Festival de Veneza.
 
No ano seguinte tem honras de abertura do Festival com Mon Cas, o seu único filme de produção exclusivamente francesa. O último documentário, até agora, é datado de 1987 e chama-se A propósito da Bandeira Nacional, filme de arte sobre uma exposição do pintor Manuel Casimiro de Oliveira (seu filho).
 
Os Canibais
 
Em 1988 realiza Os Canibais, um filme ópera adaptado de um conto fantástico do quase desconhecido Álvaro do Carvalhal. É nomeado para a Palma de Ouro em Cannes e acaba por vencer o Prémio Especial da Crítica no Festival Internacional de São Paulo.

O verdadeiro reconhecimento

Seguiu-se uma análise da história militar portuguesa, pelo olhos de um soldado em Non ou a Vã Glória de Mandar, em 1990, filme que vence o Prémio FIPRESCI em Cannes. A partir daqui, e já com mais de 80 anos de idade, Oliveira empreende o surpreendente ritmo de uma longa metragem por ano.
 
Segue-se a A Divina Comédia, uma peculiar revisão histórica, sem ligação direta a Dante, que venceu o Prémio Especial do Jurí em Veneza. Em 1992, lança uma biografia dos últimos dias de Camilo Castelo Branco, com O Dia do Desespero. Nesse mesmo ano recebe o Leopardo de Honra em Locarno, que distingue o conjunto da sua obra. Da parceria entre Manoel de Oliveira e Agustina Bessa-Luís nasce Vale Abraão, uma versão inspirada pelo clássico Madame Bovary. O filme arrecadou o prémio de Best Artistic Contribution do Festival Internacional de Cinema de Tóquio, bem como o Prémio Especial da Crítica no Festival Internacional de São Paulo.
A Caixa estreou em 1994, uma comédia que Manuel de Oliveira designou como um filme de retorno às origens, em que as suas personagens seriam as crianças de Aniki Bóbó em velhos. Nesse ano, chega um novo reconhecimento de carreira, desta vez de Itália com o Prémio Luchino Visconti, atribuído no âmbito dos Prémios David de Donatello entregues à Sétima Arte.
 
 
 A Caixa

Catherine Deneuve e John Malkovich, que se tornaram igualmente dois habitués na obra de Manoel de Oliveira, protagonizaram em 1995 O Convento, o qual retrata as pesquisas de um professor americano que se desloca a Portugal para procurar alguns documentos-chave que lhe permitam provar a sua teoria de que Shakespeare era, na verdade, um hebreu de origem espanhola.
 
O filme valeu-lhe mais uma nomeação à Palma de Ouro de Cannes e o Prémio dos Escritores e Críticos do Festival Internacional de Cinema da Catalunha. Volta a reunir um elenco de luxo com nomes como Michel Picolli e Irene Papas, e com a sua atriz “fétiche” Leonor Silveira, a qual viria a confessar em 2011 que  foi «só acompanhar uma amiga a um casting e acabaram por me pedir para fazer uma audição. E depois ligaram-me a dizer que o Manoel de Oliveira me tinha escolhido».
 

No ano seguinte surge Party, uma história que nasce do cruzamento entre dois casais, um mais jovem e um mais velho.

Em 1997 apresenta um dos seus trabalhos mais consagrados, o qual nasceu por uma história contada a ele pelo amigo João Bénard da Costa. Falamos de Viagem ao Princípio do Mundo, produção com Marcello Mastroianni no seu derradeiro papel. Uma viagem de carro de um realizador por Portugal em busca de um ator francês que procurava as suas origens. Em Cannes, venceu o Prémio FIPRESCI e mereceu uma Menção Honrosa do Jurí Ecuménico do certame. Ainda em 1997, Manuel de Oliveira foi reconhecido pela sua obra pelo Festival Internacional de Cinema de Tóquio. 
No ano seguinte surge Inquietude, que nasce do cruzamento de três histórias onde se reflete sobre a vida e a morte. Em 1999, Manoel de Oliveira realiza A Carta com Chiara Mastroianni (filha dos atores Marcello Mastroianni e Catherine Deneuve), e Pedro Abrunhosa, que se estreia em cinema, nos principais papéis. O filme, levemente inspirado no livro La Princesse de Clèves, conta a história de uma jovem presa a um casamento com afeição, mas sem amor, e que se apaixona por um artista. Foi galardoado com o Prémio do Júri no Festival de Cannes.

Um realizador do século XXI

No ano seguinte surge Palavra e Utopia, biografia do Padre António Vieira. Entre os seus principais reconhecimentos está o Prémio Bastone Bianco no Festival de Veneza. Em 2001 apresenta Vou para Casa, a jornada de um ator (Michel Picolli) em final de carreira que vê uma tragédia familiar, e a responsabilidade de tomar conta de um neto órfão, bater-lhe à porta. Venceu o Prémio Especial da Crítica no Festival Internacional de São Paulo. Ainda em 2000 volta a filmar memórias e lembranças com Porto da Minha Infância, que arrecadou o Prémio Unesco no Festival de Veneza.

O projeto que se seguiu foi O Princípio da Incerteza, com as suas “Leonores” (Baldaque e Silveira) nos principais papéis, um filme sobre quatro vidas cruzadas marcadas pela divisão de classes e pelo drama. Em 2003 apresenta Um Filme Falado, que nos conta a jornada de mãe e filha num cruzeiro entre o Mediterrâneo e Bombaim, na Índia. Foi distinguido com o Prémio SIGNIS pelo Festival de Veneza.

2004 é o ano de O Quinto Império – Ontem como Hoje, uma obra que se baseia na peça teatral que conta a história de El-Rei D. Sebastião, e que é protagonizada pelo seu neto, Ricardo Trêpa. Segue-se Espelho Mágico em 2005, nomeado ao Leão de Ouro em Veneza, mais uma colaboração com Agustina Bessa-Luis, Leonor Silveira e Trêpa. 

Belle Toujours
 
Já em 2006 surge Belle Toujours  com Michel Piccoli, Bulle Ogier, Ricardo Trêpa, Leonor Baldaque, Júlia Buisel e Lawrence Foster no elenco. Trinta e oito anos depois, as duas personagens de Belle de jour, de Luis Buñuel, voltam a encontrar-se, mas ela tenta por todos os meios evitá-lo. Ele, porém, persegue-a e, ainda que contrariada, consegue detê-la face à intenção de lhe revelar o segredo que só ele lhe pode desvendar.

Em 2007 Oliveira visita Cristóvão Colombo – O Enigma, obra inspirada no livro Cristovão Colon (Colombo) era Português, de Manuel Luciano da Silva e Sílvia Jorge da Silva.

 
Não estamos perante um filme histórico, biográfico ou científico, mas uma evocação romanesca que defende a posição de que Cristóvão Colombo era português, nascido em Cuba, no Alentejo, e foi por isso que deu esse nome à maior ilha do mar das Antilhas, que descobriu.

Em 2008, Manoel de Oliveira não estreia nenhum filme, mas trabalha já no seu próximo trabalho, Singularidades de uma rapariga Loura, o qual chega às salas no ano seguinte. Baseado na obra de Eça de Queirós, o filme acompanha Macário, que numa viagem de comboio para o Algarve vai contando as atribulações da sua vida amorosa a uma desconhecida senhora.

E chegamos a 2010, tendo, pelo caminho, o cineasta sido agraciado com Prémio Mundial do Humanismo e o Doutoramento honoris causa pela Universidade do Algarve, ainda em 2008.

Neste ano Manoel de Oliveira lança O Estranho Caso de Angélica, um filme cujo orçamento ronda os 2.5 milhões de euros e é baseado num argumento escrito pelo realizador em 1952. O elenco conta com o nome de Ricardo Trêpa e Ana Maria Magalhães.
 

O Estranho Caso de Angélica
 
É também relançado no mercado Aniki Bóbó e Douro, Faina Fluvial, dois trabalhos do cineasta agora remasterizados e com melhor qualidade que surgem quer no cinema, quer em Dvd. Também numa entrevista ao DN, perguntam-lhe se voltou a ver os filmes. Mais uma vez a sua resposta não deixa dúvidas do seu caracter e personalidade: «Não, não olho para o que fiz. Olho para o que vou fazer. Esta é a minha ocupação. Quando me perguntam sempre “qual é o filme que gosta mais”, respondo: é o que vou fazer agora
Ainda em 2010, a Fundação Serralves encomendou e Manoel de Oliveira apresentou em Veneza, aos 101 anos, uma curta-metragem incluída na secção Horizontes, habitualmente dedicada a jovens realizadores e obras de enorme ousadia estética e narrativa. Em declarações à RTP, o cineasta afirmou não achar curiosa a sua inclusão entre os mais novos, pois ele próprio se considera um principiante. Com o nome Painéis de São Vicente de Fora – Visão Poética, a fita reencena os painéis e as personagens (o protagonista é Ricardo Trêpa, neto do realizador) para dar uma mensagem de tolerância e pedir o fim das guerras no mundo.

Dois anos depois surge uma nova longa-metragem, O Gebo e a Sombra, o qual teve a sua estreia no Festival de Veneza. Adaptado ao cinema a partir de uma peça de quatro atos do escritor e jornalista português Raul Brandão, aqui seguimos Gebo, um cobrador/contabilista honrado que cumpre o seu dever mas esconde da sua esposa que o filho, João (a Sombra) o rouba, ou melhor, rouba o patrão da Companhia Auxiliar. 
 
No mesmo ano assina segmentos das antologias Mundo Invisível e Centro HistóricoO Velho do Restelo, curta-metragem que retrata um encontro entre D. Quixote, Luís de Camões, Teixeira de Pascoaes e Camilo Castelo-Branco, foi o seu último trabalho a chegar aos cinemas, em 2014, precisamente no dia em que completava 106 anos. Numa conversa com a revista Variety, afirma que este é muito mais que uma reflexão sobre Portugal: «É uma reflexão sobre a Humanidade». Sobre o facto de não ter conseguido financiamento para a obra, em 2013 lamentou-se à Cahiers: «Penso que no país há uma grande indiferença pelo que já realizei. Tanto faz que o meu cinema exista ou não exista. Tanto faz que o meu cinema exista ou não exista».
 

2014, Oliveira é novamente condecorado em França

 

Depois de em 2005 ter sido distinguido por Jacques Chirac com o grau de Comendador da Ordem da Legião de Honra, o cineasta português Manoel de Oliveira foi novamente consagrado em França em 2014 com mais uma insígnia. Desta vez o portuense  recebeu o título de Grande Oficial da Legião de Honra, que segundo o presidente do estado francês, François Hollande, visava «recompensar uma carreira fora do comum». 

Esta distinção somou-se a muitas outras, como a de Comendador da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada (9 de Junho de 1980), Grã-Cruz da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada (29 de dezembro de 1988, professor honorário da Academia de Cinema de Skopje e Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique (13 de dezembro de 2008).

(Artigo originalmente publicado em 2012 e revisto a 2/04/2015)

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