Quarta-feira, 24 Abril

Crónicas de Tallinn: «Starred-up», «Lúcifer» e «In the Crosswind» convencem

Após um ano intenso pelo circuito de festivais internacionais de cinema é fácil pensar que já nada nos irá surpreender, que não há nada que nos tenha escapado, ou rumor que não tenha sido comprovado. Dificilmente podia estar mais errado e o circuito apenas fecha oficialmente com o ultimo dos festivais da chamada categoria A*: Tallinn Black Nights Film Festival, um festival onde os melhores se misturam com as revelações escondidas, tudo sobre um manto de neve e um frio de rachar.

Como já vem sendo habitual nos últimos anos, o grande evento cinematográfico do Báltico funciona como uma espécie de sumario do que melhor se lançou ao longo do ano. Este ano é mais fácil enumerar as obras-primas que ficaram de fora do que as que compõem este programa de autênticos loucos (umas quantas centenas de filmes espalhados por cerca de 30 programas). Estão praticamente todos aqui: os Godards, Miikes, Fedorchenkos, Dolans, Tsai Ming Laings e Roy Anderson´s. Por aqui vê-se Whiplash, Birdman e Relatos Selvagens. Os melhores asiáticos, europeus e latino-americanos. Não falta virtualmente nada.

Mas concentremos-nos nas surpresas, começando com um pequeno grande filme britânico, que apesar da sua já longa vida apenas agora em Tallinn assumiu uma posição de destaque. Refiro-me a Starred-up, de David Mackenzie, um drama com uma prisão de alta segurança como pano de fundo, que nos narra a historia de um jovem extremamente violento que acaba encarcerado numa prisão, em grande parte liderada pelo seu sempre ausente pai.


Starred-up

Que não haja duvidas, o filme é absolutamente soberbo e fez renascer o género das cinzas, evitando muitos dos clichés habituais, focando-se acima de tudo num ambiente de incessante tensão. A realização de Mackenzie, responsável pelo triste incidente intitulado O Sentido do Amor, revela-se também ele renascido e capaz de muito melhor do que no seu passado recente. A performance de Jack O´Connel ( 71´) tem sido alvo de grandes louvores, com muitos críticos a chama-lo de “revelação do ano”. Ben Mandelsohn (Reino Animal) não lhe fica atrás, relembrando-nos que são poucos aqueles que o podem destronar no que toca a papéis de criminosos psicopatas.

Outra agradável surpresa foi a confirmação de que a Flandres Belga, a par da Holanda, atravessa um período de enorme sucesso criativo. Rapidamente o cinema da região assume maior destaque, chegando mesmo ao ponto de se estar a transformar em moda. Neste caso tratasse de um fenómeno mais que justificado. Anos de uma politica de apoio à produção, em particular no que toca ao surgimento de novas caras e visões, apresentam agora frutos, sendo raríssimo o festival que não apresenta uma serie de obras belgas e/ou holandesas, praticamente todas elas regradas por apontamentos experimentais e de uma delicadeza técnica de espantar os mais céticos. De todas as obras da região que por aqui passaram, possivelmente aquela que mais impacto provocou foi a do novo trabalho de Gust Van Den Bergh, o cineasta que nos trouxe êxitos como Bluebird e Little baby Jesus of Flanders.


Lucifer

Sempre obcecado por temas ligados à religião e espiritualismo, o seu novo trabalho, Lúcifer, transporta-nos para uma aldeia mexicana parada no tempo, onde a população, cegos pela fé e ansiosos pela chegada de um messias ou salvação, recebem a visita do diabo em pessoa. Apesar da eficácia da narrativa, o grande triunfo do filme é sem duvida a nível estético, com uma tela limitada por um grande circulo que elimina qualquer possibilidade de um mundo fora dessa fronteira. O truque de Xavier Dolan em Mommy torna-se pálido quando comparado com Lúcifer. Melhor ainda, Bergh utilizou uma serie de técnicas pioneiras, incluindo um protótipo de uma lente com 3 espelhos exteriores, que lhe permitiram imagens, tons e texturas nunca antes vistos. Por estas e muitas outras razões, o seu novo trabalho é possivelmente o mais entusiasmante do festival.

Ainda no campo do experimental, o cinema local também não passou despercebido. A obra da Estónia que mais deu que falar até ao momento é inquestionavelmente In the Crosswind, de Martti Helde, que nos revela a história dos milhares cidadãos dos estados Bálticos que foram deportados para a Sibéria durante os anos 40. Mais uma vez é a forma que mais se salienta no filme, desta feita utilizando uma serie de tecnicas onde tudo é estático e o preto e branco nunca foi tão profundo, transmitindo assim a sensação de vidas interrompidas, repentinamente suspensas e para sempre gravadas nos confins da memoria da região. Um sucesso inesperado, sem duvida.


In the crosswind

Mas como nem sempre todas as experienciais funcionam é inevitável mencionar uma das grandes desilusões do evento, Allure, de Vladan Nikolic. No papel, esta é a história de várias mulheres emigrantes que lutam por uma existência feliz na sempre badalada Nova Iorque. Na realidade pouco mais é do que cerca de hora e meia de algumas modelos a passearem-se pelas ruas da Big Apple, uma serie de diálogos colados a cuspe e um enredo tão inocentezinho e ignorante que dói. Pode ser difícil de acreditar, esta é a versão simpática e censurada do que a critica tem vindo a dizer sobre o filme.

O evento aproxima-se no fim mas ainda faltam muitas obras para serem dissecadas pela audiência, incluindo um dos documentários mais falados do ano, Red Army; o grande filme germânico de 2014, Phoenix, de Christian Petzold; e claro, o intimidante 10.000km, do espanhol Carlos Marques-Mercet.

Tudo no próximo capitulo.

 

* classificação atribuída pela Federação Internacional de Associações de Produtores Cinematográficos

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