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«Os Contos da Lua Vaga»: a obra-prima ou a confirmação de um mestre?

“(…) com devotos fiéis, mas nenhum discípulo e nenhuma exegeta“, menciona o realizador Paulo Rocha em relação ao consagrado cineasta japonês, Kenji Mizoguchi, que contaria com um inédito ciclo programado na Calouste Gulbenkan. Ciclo, esse, projetado 20 anos depois da morte de um dos homens mais incontornáveis da História cinematográfica nipónica, e, tendo como uso as palavras escritas de Rocha, um dos mais esquecidos. A sua carreira é hoje, integralmente, um desafio, passando do mudo até aos talkies (em similaridades com outro conterrâneo tardiamente desvendado em terras lusas – Yasujiro Ozu), e cuja fama entre o circuito cinéfilo havia apenas sido suscitado anos tardios. Essa mesma aclamação, como também atenção, fora realçada com a passagem de Os Contos da Lua Vaga (Ugetsu monogatari) no Festival de Veneza de 1953, onde iria vencer o Leão de Prata do certame, à imagem de O Intendente Sansho (Sanshô dayû) que conquistaria tal proeza no ano seguinte.

Mas Os Contos da Lua Vaga não resultou em nenhum impulsor deste cinema dignamente “mizoguchiano”, ainda hoje estudado e por vezes ignorado, tendo como principais influências uma cercada globalização cinematográfica (há toques de neorrealismo italiano ali, um expressionismo alemão acolá, a moralidade de Hollywood além). O que, na sua provável ambição, Os Contos da Lua Vaga tornou-se na mais célebre das suas obras graças ao aperfeiçoamento das principais características do realizador; os planos longos intercalados por grandes gerais e travellings que tanto usufruem dos cenários feudais e outras reconstituições históricas (ainda há espaço para exorcizar um Japão tradicional e regido no seu particular quotidiano), e da união quase umbilical entre a imagem e o som, com principal destaque a confrontação de demónios por parte de Genjurô (Masayuki Mori) no filme referido.

Em certa parte, Os Contos da Lua Vaga assume-se como um jogo de sombras, flashsbacks integrados na ação e não reduzidos a camadas narrativas, marcos que seriam aproveitados por Michelangelo Antonioni em Profissão: Repórter (quem nunca se esquece da dupla interpretação de Jack Nicholson na ação decorrida e no flashback de varanda), a atmosfera que nos afronta como um submisso a mercê desta Lua de agosto e da coexistência entre a ficção e o onírico, o fantástico com a reconstituição e o mundo dos vivos com os dos mortos, negligenciando as suas condições metafísicas. Mizoguchi beneficia das dicotomias, da harmonia de teores para implantar a sua fábula de homens ambiciosos e das respetivas mulheres mártires desse pretensiosismo egoísta.  

É como uma pintura delicada, pintada sob toques graciosos e delineado por um carvão hesitante, mas de concepção precisa. Mizoguchi é um artesão, um perfeccionista (como muito tem sido caracterizado), mas redutor do seu espaço, e nisso torna-se mais que subtil na transposição desta (bi)adaptação (baseado nos contos de Ueda Akinari e de Guy de Maupassant), mais um fator que nos leva à sua natureza híbrida. Híbrida? Porque no cinema de Mizoguchi encontramos a fusão, um requintado e apetitoso prato no qual concentra as memórias tradicionais com a sofisticação do tempo que se depara. Os Contos da Lua Vaga não é nenhum avante nesta sua “gastronomia”, é simplesmente o solstício de um autor que merece mais do que uma mera menção.